O mito da perfeição
Revista Veja, 25/11/2009
Um dos consulentes de Veja.com conta que se esforçou a vida inteira para ser o melhor dos filhos, o irmão mais querido, o namorado perfeito, o funcionário exemplar, o chefe compreensivo, o amigo de todas as horas, porém se deu conta de só ter se comportado desta maneira para satisfazer o “desejo do outro”, ser adorado e se sentir superior. Ou seja, por egoísmo.
Modéstia e resignação são características dele mas, como não poderia deixar de ser, o desejo do outro e o dele nem sempre coincidem. Assim, casou-se há oito anos por causa de uma gravidez inesperada e é pai de três filhos. Hoje não tem afinidade alguma com a esposa, gostaria de se separar e não ousa. Tem pavor de ser reprovado. Quando teve uma amante e quase foi pego, chegou a pensar em suicídio. Sabe que precisa aprender a decepcionar os outros para viver.
A história tanto surpreende pela clareza do consulente em relação à própria vida quanto pela impossibilidade de mudá-la. Apesar de uma consciência clara, está paralisado pelo pavor da reprovação. Para saber o porquê necessita de uma consciência nova, que só a análise propicia pois só a fala expõe ao inconsciente e ao que este pode revelar.
A história do consulente mostra o quão limitada a consciência reflexiva é quando se trata da subjetividade. Precisamente por causa deste limite, a Psicanálise substituiu o “Penso logo existo” por “Digo logo existo”. Com isso, ela enfatiza a importância do discurso para o sujeito.
Não é fácil aceitar o « Digo logo existo » porque a palavra nos escapa, fato de que a língua dá conta com vários provérbios, como: “O silencio é de ouro” ou “O peixe morre pela boca”. Freud acabou com a ilusão de que somos donos de nós mesmos. Ele sabia que a sua teoria encontraria resistência. Tanto que, ao introduzir o conceito de inconsciente, escreveu que estava infligindo aos seus contemporâneos uma ferida narcísica.
O inconsciente faz e fala por nós. E, também disso, a língua dá conta com um outro provérbio, que existe em vários idiomas: “Ninguém é perfeito”. Se atentássemos para o que a língua ensina, sofreríamos menos porque aceitaríamos a possibilidade de falhar. Em vez disso, como o consulente, nós insistimos no mito da perfeição. Caímos nesta armadilha do nosso imaginário, ao contrário de Freud que valorizou o que falha na memória, na linguagem e no comportamento para escrever A Psicopatologia da Vida Cotidiana, um livro absolutamente atual. Por ter aceito a imperfeição da condiçao humana e ter se debruçado sobre a realidade, abriu um caminho verdadeiramente novo e nos legou a possibilidade de nos curarmos de nós mesmos.