O lugar do analisando

O lugar do analisando

Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
foi publicado com igual título em Lugarejus, nº 9, setembro 1980

Lacan fala do lugar do analisando, Freud nunca deixou dúvidas quanto a isso, deixando insistir no seu discurso a questão suscitada pelo próprio sintoma. Daí a virulência da sua posição, em que de imediato reconhecemos uma posição ética. Falar do lugar do analisando significa realizar o desejo e a liberdade de desejar. Por isso, paga-se um preço, o de certa impossibilidade a que se estará sujeito. Qual? Trataremos de responder a isso para em seguida mostrar de que modo a impossibilidade em questão afeta a transmissão da psicanálise.

O ANALISANDO

“O que é que ele quer de mim?” Esta é a questão do analisando. Por imaginar que o analista tem um desejo em relação a ele. Em contrapartida, a pergunta do analista é: “O que é que ele deseja?”. Ao não saber do analisando corresponde um outro do analista e só por isso de fato resultará um saber novo, que aliás não é nem de um nem de outro, se manifesta no que é dito pelo analisando e pontuado pelo analista. Ruptura, pois já não é a pessoa do analista que conta para o analisando, mas o dito pontuado onde este não sabia de si, e se origina agora a questão: “Quem sou eu?”.

Se o analisando passa de “O que é que ele quer de mim?” a “Quem sou eu?”, é que o analista lhe reenviou sua mensagem do lugar do Outro para fazê-lo esperar a resposta do inconsciente. Através da interpretação, uma passagem, em que o analisando deixa de ser objeto do desejo do Outro para se tornar sujeito do inconsciente, passagem de um “Quê?” a um “Quem?” — subjetivação.

Falar do lugar do analisando é, pois, falar de onde a questão “Quem sou eu?” se impõe. Vimos que o saber aí produzido é sustentado por um não saber necessário para que o desejo a cada vez enfim se diga e o sujeito surpreendido se reconheça nele, podendo então encontrar sua verdadeira questão. Assim, a surpresa é intrínseca àquele falar e é ela, por sua vez, que sustenta a possibilidade de um outro futuro não-saber, experiência daquele que escuta para suscitar mais dizeres.

Um não-saber. Um saber. Uma surpresa. Um outro não-saber. Ciclo em que reconhecemos uma das razões da continuidade do processo, garantida ainda pela própria questão daquele que fala. Vejamos. O analisando só o é através do dizer, no qual ele se reconhece. Se, entretanto, a verdade não se diz nunca toda, a verdade sobre o ser em questão será por força incompleta. No próprio ato de se reconhecer, o analisando se desconhece. Mas, dada sua posição, precisa necessariamente responder à questão de saber quem fala. Ou seja, incapaz de encontrar a resposta, não pode escapar à sua questão, cuja particularidade é a de se autoengendrar.

Trata-se aí de um não-poder e de um dever-dizer imperativo, uma impossibilidade de responder de uma vez por todas e uma impossibilidade de cessar de dizer.

O ANALISTA

Falar do lugar do analisando significa, para o analista, persistir na via sem saída em que sua própria análise o introduziu. Responde ainda à questão “Quem sou eu?”, mas agora através dos significantes da doutrina. Quando Lacan diz que o sintoma dele é o real, responde àquela questão graças a um dos significantes por ele introduzido na doutrina. Do retorno a Freud, resultou a topologia nova do real, do imaginário e do simbólico, e a possibilidade para Lacan de se situar como sujeito.

Persistir na própria via é, para o analista, produzir o significante no qual ele possa reconhecer-se como sujeito da história. Para retornar neste sentido, precisa fazê-lo num outro — no sentido do circuito da pulsão —, circular em torno da teoria (objeto a) até produzir, findo o circuito, um significante novo, pois retornar verdadeiramente é inovar, como aliás nos mostram os percursos de Freud e de Lacan.

Assim, num retorno determinado pela história do analista, realiza-se através do seu discurso a transmissão da psicanálise, implicando um tempo de não-saber, a produção e a reprodução de um enigma, o impasse a cada passo, a surpresa, a impossibilidade de cessar de dizer. E, ainda, a impossibilidade para o sujeito de uma escolha livre do seu tema, que para ele não é independente daquilo que pode ser a causa do próprio discurso, razão pela qual, neste domínio, não há como empresariar a produção que, para ser conforme às exigências do discurso analítico, não se subordina a uma ordem alheia a ele.

Supondo o estilo de cada um, a transmissão da psicanálise requer do sujeito que ele a faça na própria língua. Lacan teria retornado a Freud, teria de fato reencontrado Freud fora da língua do seu estilo? Foi também por ter insistido na língua francesa que Lacan fez os significantes freudianos se abrirem em sentidos novos, como ocorrerá para Lacan nas traduções da sua obra. É o caso, por exemplo, da tradução em português do Brasil de parlêtre por “falesser”, onde o neologismo francês se transmite integralmente acrescido de um sentido que o original não presentifica e é essencial para a teoria, o de falesser, sem o qual o parlêtre, sujeito do significante, não pode existir.

Isso quer dizer que é preciso se alienar nos significantes do Outro a ponto de recebê-los deste na própria língua, alienar-se a ponto de se separar. Só assim não se falará francês em português do Brasil ou em espanhol, como ainda ocorre na difusão da teoria lacaniana na América Latina.