O legado dos modernistas

O legado dos modernistas

Academia Paulista de Letras, 2022

 

O ideário dos modernistas foi fundamental para o meu, tanto no que diz respeito à escrita propriamente dita quanto à escolha dos temas sobre os quais eu me debrucei. Tenho com os modernistas uma dívida simbólica. Antes de falar dela, começo dizendo que não há por que santificar ninguém.

A propósito de Manuel Bandeira, Oswald escreveu que ele era um “triste politiqueiro”, poeta que “tem um pequeno filão de ouro perdido num chumaço de poesia barata”. Refere-se a Brecheret como “um idiota e um indigno”(1).

Entrevistado sobre a influência modernista na sua obra, Graciliano Ramos respondeu que enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimento, ele se achava em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão. Disse que o modernismo não se interessou pelos verdadeiros problemas sociais do país, que se contentou em investir contra a colocação pronominal.

Segundo Ruy Castro, a Semana de 22 só foi importante para São Paulo, onde ainda imperava o parnasianismo, não havia uma única galeria de arte e as pessoas iam dormir às 9 horas da noite. Ninguém de fora de São Paulo teria tomado conhecimento dela, apenas uma ação entre amigos. Ruy Castro fala ainda da consagração da Semana de 22 como uma ideia equivocada, construída pelos modernistas e pela USP.

Evoquei Oswald, Graciliano e Ruy Castro, porque entre eles há de comum uma tendência a desqualificar o trabalho alheio. O que explicaria essa tendência que é nossa, mas não é só nossa? Recorro a Freud. Talvez tenha a ver com o que ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, ou seja, a repugnância gratuita e primária por pessoas do nosso próprio meio, pessoas que têm afinidades naturais conosco.

A exemplo disso, a relação dos brasileiros com os portugueses, que sempre foram motivo de chacota, e a dos portugueses com os brasileiros. Nunca me esqueço do dia em que eu pedi um café num bar de Lisboa e o garçom se fez de desentendido perguntando: “Queres uma bica?”. A repugnância gratuita, implícita no narcisismo a que eu me referi, se explica pelo fato de que a diferença é vivida como uma ameaça.

Como diz Manuel da Costa Pinto, a quem nós devemos a organização do livro Diário Confessional de Oswald de Andrade, a Semana de 22 serviu para consolidar vanguardas que se iam realizar plenamente em obras posteriores”(2).

O que me interessa aqui é falar do legado dos escritores modernistas. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald escreve: “Queremos uma língua sem arcaismos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. A língua como nós a falamos, como nós somos”(3).

O escritor, como o psicanalista, não pede a ninguém autorização para ser o que é, ele se autoriza e faz isso procurando o seu estilo, a sua língua, que não é a de todos, é a dele. A exemplo disso, James Joyce, que não podia escrever na sua língua natal – o gaélico, porque não seria lido – e para não escrever na língua do colonizador, o inglês, inventou a sua própria língua, o inglês de Joyce.

O escritor se autoriza por si só, mas os antecessores abrem caminho. Os modernistas indicaram a via que os escritores identificados com o povo brasileiro seguiram, aqueles para quem a língua oral é a base da sua literatura.

O nosso falar, à diferença do falar dos portugueses, é lento, quase cantado, tem vogais abertas. O português do Brasil é moldado pela nostalgia da África, que impõe à nossa fala um outro ritmo. Recentemente, uma psicanalista lisboeta me disse que os portugueses engolem as vogais porque são fechados para si mesmos e para os outros. O único sentimento que eles se autorizam a ter é a saudade.

A sensibilidade dos modernistas para a língua foi decisiva, ela dividiu as águas da literatura. De um lado, os que estilizariam a língua falada. Do outro, os puristas, que, segundo Mário de Andrade, seriam capazes de telefonar para Lisboa a fim de saber como se escreve.

Possível que o ancestral dos modernistas seja o autor dos Lusíadas e que eles sejam neocamonianos. Digo isso porque Camões desrespeitou a sintaxe clássica em benefício do ritmo. Como ele, os modernistas sacrificaram a gramática em benefício da língua falada pelo povo. Trata-se de uma verdadeira subversão, um ato profundamente inclusivo. Uma subversão análoga à de Céline, que se opôs às convenções literárias, apostando no que ele chamava de ma petite musique, ou seja, no ritmo. Cada um de nós tem essa petite musique, razão pela qual Lacan introduziu na Psicanálise o conceito de lalangue, alíngua, numa só palavra, para diferenciar da língua que é de todos e nos é ensinada na escola.

Os modernistas autorizaram os escritores que vieram depois a atrelar a sua escrita à fala. Isso significou incluir na língua portuguesa do Brasil todas as outras línguas, a dos nativos, a dos escravos e a dos imigrantes. Eu como descendente de imigrantes, sou particulamente sensível a esta inclusão. Sobretudo porque os meus ancestrais não me transmitiram a língua deles. Ou por terem vergonha das suas origens ou por acharem que eu, assim, me integraria melhor na cultura brasileira. Uma aberração, porque a nossa identidade é feita de todas as outras que nos moldaram.

Mário e Oswald não foram apologetas da oralidade por acaso, e sim por valorizarem a cultura popular. Queriam nacionalizar a arte, queriam uma transposição erudita de elementos autenticamente nacionais, extraídos das manifestações populares. O resultado, no caso de Villa-Lobos, foi uma obra tão nacional quanto universal, imediatamente reconhecida no mundo inteiro.

A valorização da cultura popular brasileira é patente no que Oswald diz sobre o Carnaval, que, segundo ele, é a religião nacional. Através do Carnaval, todo ano o Brasil se inventa e se reinventa, se diferencia e se universaliza, prodigalizando aquilo de que nenhum povo prescinde: uma grande ilusão.

Por outro lado, através do Carnaval, o Brasil rememora a sua história, reatualiza uma fantasia que presidiu a conquista e a colonização: a fantasia de encontrar o paraíso ou de já ter nele chegado. Assim, se renovando continuamente, o Carnaval repete uma fantasia ancestral, a dos descobridores, que, inseparável do gosto da maravilha e do mistério, se traduzia na geografia fantástica do Novo Mundo. Uma geografia de entidades misteriosas, cinocéfalos, homens caudados, sereias e amazonas, além de uma extraordinária fauna antropomórfica. Faziam parte desta geografia a Fonte de Juventa, os reinos áureos e argênteos. Um cenário de riquezas que se completava pela exaltação da flora e da fauna. São temas da conquista e do Carnaval.

Dizem que o Carnaval é o dia do esquecimento. A pesquisa que eu fiz durante dois anos, nos barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro e dialogando com Joãozinho Trinta, me permitem afirmar que o Carnaval é um culto paradoxal do esquecimento. Dediquei a Joãozinho Trinta um livro chamado Os bastidores do Carnaval(4), que eu menciono aqui porque ele abriu a via para a escuta dos carnavalescos. Foi depois deste livro que a TV Globo passou a escutar os carnavalescos nos barracões e a se debruçar sobre os temas das escolas de samba.

Joãozinha Trinta se referia ao desfile dizendo que ele é uma ópera de rua. Trata-se de um gênero artístico que mereceria uma pesquisa contínua, um museu para as alegorias que mostrasse como nós brasileiros nos apropriamos das representações alheias para fazer delas as nossas. Um museu com as fantasias de Evandro Castro Lima, dignas das que foram feitas por Saint Laurent e exibidas no Museu das Artes Decorativas de Paris.

Não se pode esquecer também que Oswald financiou o Parque industrial, romance de estreia de Pagu, em 1933, que denuncia a opressão machista contra as mulheres proletárias e antecipa questões levantadas pela luta feminista nas décadas seguintes. Também por isso Oswald de Andrade é um dos nossos ancestrais.

 

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Academia Paulista de Letras, São Paulo (SP), 24 de fevereiro de 2022.

(1) Pinto, Manuel da Costa (Org.). Diário Confessional – Oswald de Andrade. São Paulo: Cia das Letras, 2022.
(2) Op. cit.
(3) O manifesto ícone do modernismo brasileiro foi publicado inicial e parcialmente nas páginas do jornal Correio da Manhã, em março de 1924, sob o título de “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Um resumo consta do capítulo “Falação” do livro Pau Brasil, lançado em Paris (1925).
(4) Milan, Betty. Brasil: os bastidores do Carnaval. São Paulo: Biblioteca Eucatex de Cultura Brasileira, 1987.