O lapso da derrota
bettymilan
Folha de S. Paulo, Tendências e Debates, 11/11/22
TV Globo. Último ato do debate das eleições presidenciais de 2022. A cada um dos candidatos só cabia fazer as suas considerações finais. Um minuto e meio. Lula foi sorteado para ser o primeiro. Agradeceu a Deus pela oportunidade de falar, ao público por ser ouvido e à TV Globo pela emissão. Prometeu restabelecer a harmonia, apostar na educação, na cultura, no emprego e no salário mínimo. Pediu ao eleitor que não se abstivesse, garantiu que seria possível reconstruir o país se ele ganhasse, pediu que escolhêssemos o número 13.
Ato contínuo, Bonner passou a palavra para o outro candidato que primeiro evocou a facada, agradecendo a Deus por ter dado uma segunda vida em Juiz de Fora e a missão de comandar o país « num dos momentos mais difíceis da história da humanidade ». Já aí, antes de dar um tiro no pé, ele derrapou. O drama atual não pode ser equiparado ao da gripe espanhola- a gripe de 1918- que infectou um quarto da população mundial e causou no mínimo três vezes mais mortes. Isso para mencionar a história recente porque, na Idade Média, a peste negra matou trinta por cento– se não mais– da população européia.
O tiro no pé foi quando, depois da derrapada, o candidato se endereçou a Deus e, como se fosse um personagem, disse: « Se essa for a sua vontade, estarei pronto para cumprir com mais um mandato de Deputado Federal. » O ato falho não passou desapercebido, porém como o candidato não estava fora de si, ele foi corrigido: «Presidente da República».
Bolsonaro não perdeu o prumo por ser tão indiferente ao que diz quanto à história da humanidade, que mudou significativamente graças à ciência. Na Idade Média, os homens não tinham a menor ideia do que causava a peste e, durante a gripe espanhola, os cientistas não conseguiram isolar o vírus. Agora, levaram um mês para fazer isso e as vacinas começaram a ser produzidas. Na batalha entre os humanos e os patógenos, nunca fomos tão poderosos. As epidemias hoje são desafios controláveis porque dispomos da vacinação.
O ato falho do candidato talvez tenha a ver com a negação da pandemia e a desqualificação da vacina, ou seja, com a consciência das falhas enquanto presidente. Mas o lapso não pode ser explicado só através da consciência.
Um ano depois de publicar A Interpretação dos Sonhos, em 1900, Freud publicou A Psicopatologia da Vida Cotidiana, para mostrar que, além de se manifestar no sonho, o inconsciente se manifesta nos erros da linguagem (fala, escrita, leitura), da memória (esquecimentos) e do comportamento (tropeçar, cair, quebrar, etc.). O erro como o sonho é a expressão de um desejo.
Que desejo se manifestou no lapso histórico do candidato? Por que ele se disse pronto para cumprir um mandato de deputado federal e não de presidente? A chave da explicação está na sua história política. Bolsonaro foi deputado federal por sete mandatos se candidatou e venceu sete vezes. Da possibilidade de conquistar a deputação ele estava certo enquanto a de se reeleger para a presidência era incerta. O lapso é a expressão do desejo de ser novamente vitorioso e do medo de ser derrotado.
Não fosse o medo, Bolsonaro não teria distribuído dinheiro a torto e a direto para comprar eleitores e não teria facilitado o acesso às armas para propiciar uma insurreição caso fosse derrotado e não conseguisse o apoio das forças armadas.
Bolsonaro só não voltará se as metas de Lula forem alcançadas e todos os esforços são necessários para que isso aconteça. Precisamos provar que foi uma vitória mais do que merecida e a sabotagem não vencerá.