O futuro da psicanálise (1996)
Betty Milan
Este texto integra o livro
O saber do inconsciente / Trilogia psi
O discurso da psicanálise está ou não ameaçado de desaparecer? Há indícios de que esteja, tanto na França quanto nos Estados Unidos.
A oposição ao pensamento de Freud é tradicional na América do Norte, que, desde sempre, privilegiou a psicologia comportamental. Exemplo dessa oposição, o ocorrido quando a Library of Congress — Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, onde estão os arquivos de Freud — tentou organizar uma grande exposição cujo tema seria Freud, conflito e cultura, e que teria finalidade educativa. Tal exposição, que deveria ocorrer em 1996, foi postergada por causa de um grupo de opositores ao pensamento freudiano, o Freud Critics, que, segundo o Le Monde, entrou em cena para impedir o ressurgimento do mito heróico da psicanálise e, segundo Elisabeth Roudinesco, por se tratar de um grupo antifreudiano, para o qual o fundador da psicanálise ora é um plagiário, ora um clínico capaz de induzir os pacientes a ter fabulações sexuais. Sumariamente, os membros do Freud Critics fizeram uma petição, exigindo que se incluísse no comitê da dita exposição um seu representante. Diante das pressões, a Library of Congress decidiu pelo adiamento do evento.
Os Estados Unidos são avessos ao pensamento freudiano, porque a cura dele decorrente implica uma relação com o tempo, em que é preciso poder perdê-lo, e isso contraria necessariamente a ideologia do time is money.
Freud foi mais bem acolhido na França do que nos Estados Unidos, e Lacan talvez seja a prova mais convincente disso. Surgiu preconizando o retorno a Freud contra o que ele chamava de human engineering, prática americana decorrente do behaviorismo e inteiramente contrária à manifestação do inconsciente.
Mas o fenômeno Lacan não significa que o pensamento psicanalítico tenha de fato penetrado na França. Pode-se mesmo dizer que o futuro da psicanálise, nesse país, não é menos incerto do que na América do Norte. São as idéias cartesianas que imperam no meio intelectual francês, a crença no “penso, logo existo”, que não favorece uma cura em que o sujeito deve se deixar preceder e surpreender pela palavra e cujo pressuposto é “digo, logo existo”.
Lacan se afirmou com a maior dificuldade no seu país de origem, e, hoje, menos de duas décadas depois da sua morte, é difícil encontrar aí manifestações evidentes do seu espírito, que é freudiano e tanto requer a disposição para a surpresa quanto a valorização do não saber.
O Brasil, pela sua cultura, favorece aquela e esta. Assim, por exemplo, o desfile carnavalesco, que nunca se repete, porque uma das metas da festa é surpreender. Assim, a nossa literatura, que, de longa data, valoriza o não saber. Ouçamos o narrador de Clarice Lispector, no romance A hora da estrela: “A menina não perguntava por que era sempre castigada, mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante da sua vida”.
O não-saber é incompatível com o behaviorismo americano — que sabe a priori o que é bom para o indivíduo. E também com o cartesianismo — para o qual o sujeito é o do eu penso, e não o do eu me surpreendo, que o analista procura despertar, exercitando-se numa ignorância consciente de si mesma, douta sem nunca ser doutoral.
O Brasil pode ainda favorecer a psicanálise porque a cultura do sincretismo, como o inconsciente, desacredita do princípio da não-contradição. E não é por acaso que “a lógica paraconsistente”, que não obedece a tal princípio, tenha sido inventada por um brasileiro.
Considerado à luz do que se passa nos Estados Unidos, na França e no Brasil, o destino da psicanálise parece ser diferente nos três países, e não é aberrante pensar que os brasileiros tenham uma contribuição significativa a dar para este campo do conhecimento, que precisa se renovar incessantemente, reinventando seus conceitos e seu método. A contribuição requer a independência de que Freud, ao longo da vida, deu exemplo, exige a valorização dos nossos trunfos culturais.