O desejo na primeira pessoa

O desejo na primeira pessoa

 

Deonísio da Silva (1)

Este é o terceiro romance de Betty Milan. Os outros dois, O sexophuro e O Papagaio e o Doutor, entusiasmaram leitores exigentes, como os escritores Carlos Drummond de Andrade e Moacyr Scliar e o diretor teatral José Celso Martinez Corrêa. A autora, formada em medicina pela USP, é também conhecida por livros como Isso é o país e O que é amor, além de vários artigos sobre temas brasileiros, lastreados numa experiência raríssima: o seu trabalho como psicanalista junto a Jacques Lacan, de quem foi analisanda, assistente e tradutora.

Este respeitável currículo sustenta uma ficção inconformada com o documental e busca o que está por trás das palavras, nas estruturas profundas do sentido. Em sua forma de prosa erótica, A paixão de Lia lembra certos textos do escritor e jornalista francês Roger Vailland, especialmente Os diálogos de Madame Maravilha com Otávio, Lucrécia e Zéfiro.

As falas de Lia, sempre em tom confessional, parecem caudatárias dos diálogos dos três libertinos naquela casa de prazeres. Lembram também de algum modo duas outras obras que lhe servem de domínio conexo, para um melhor entendimento, a peça de teatro A prostituta respeitosa, de Sartre, e o romance do escritor gaúcho Josué Guimarães, Dona Anja. Aquela, pela fala de uma escolha de prosa teatral, e esta, pelo desmascaramento sutil de nossas conhecidas hipocrisias, nossos medos do desejo, fazendo da fronteira entre o erótico e o pornográfico uma linha variável ao sabor dos controladores de discursos.

Sob a alegação de ofensas à moral e aos bons costumes, foram proibidos mais de cinco centenas de livros no Brasil dos anos pós-64. Se fosse publicado nos anos 70, este livro de Betty Milan teria entrado para aquele famigerado index, sobretudo por não se perder de vista que a autora assume as falas de suas personagens, como, aliás, fez Rubem Fonseca em Feliz Ano Novo, dispensando o eufemismo de uma terceira pessoa a distribuir fala para essa ou aquela personagem. Não, as confissões eróticas são feitas numa atrevida primeira pessoa e esta coragem não pode passar ignorada.

O tom confessional deste romance estrutura-se nos cinco modos distintos escolhidos por Lia para narrar os seus prazeres e que servem também para sistematizar o seu relato: My man, O bordel, A cortesã, Lesbos e Ave Maria! As raízes do amor são mais profundas do que aparentam, mesmo quando é estudado sob a rubrica de patologias, transformando-se no material mais à mão para decifrar os enigmas que o doente traz ao médico social, seja ele o psicanalista de orelhas alugadas ao paciente ou o advogado cuja missão é defender o cliente acusado de crime passional. Betty Milan evita as tramas que poderiam alicerçar-se nesse território vago e impreciso, ainda que apoiadas em análises psicológicas de histórias eivadas de ciúme e sedução, e opta por uma investigação ficcional, procedendo a uma arqueologia do desejo.

Em artigo recente, o jornalista e crítico literário Luiz Carlos Lisboa, comentando a ficção de Betty Milan, aludiu a uma “reabilitação da sensualidade pelo desencanto (não culposo) com a sexualidade, a validade do erotismo pela desvalorização da pornografia, o apogeu da liberdade pelo encontro com o amor”. O problema continua sendo o da fronteira entre erotismo e pornografia. As palavras sussurradas pelos amantes à hora do amor, os gemidos de prazer e outros sons que presidem o ato mais importante de nossa vida, deslocados de seu ambiente, não natural, mas cultural, e postos em outros contextos, como usualmente procedem as proibições, podem levar a graves desentendimentos.

Não, porém, na ficção de Betty Milan, que, apesar de não temer o palavrão e usá-lo neste romance, faz uma narrativa erótica cheia de delicadezas. Privilegia a metáfora para descrever os atos amorosos. “Me beije, me envolva e se afaste para olhando me apalpar o seio-cabaça da direita, beber depois o mel do bico intumescido no seio esquerdo, o do coração. Não haverá porta de entrada que não nos contenha e nenhuma que deva permanecer fechada.”

Esta Lia, buscando “ser todo dia outra e com isso escapar ao tempo”, transmuta-se em Xerazade diante de um leitor que não pode morrer sem conhecer os seus segredos. Este não abandona nenhum dos capítulos porque tem curiosidade em saber quais os caminhos a percorrer e que lua ela dará a seus relatos, que não evitam a cama dos amantes, o leito da cortesã ou o próprio ambiente do bordel, misturados a perversidades e inocências nunca vistas. Mas é nos cinco depoimentos de Lia que o leitor encontra as melhores reflexões. Lia pode ser a lésbica eventual, porém sua confissão amorosa lembrará um amor ainda mais impossível; o de Teresa d’Ávila, apaixonada por um Jesus crucificado, dado que a autora não permitiu que a linguagem amorosa se limitasse ao prazer físico.

Com este livro, Betty Milan buscou as vozes do desejo. No começo da narrativa, tão curta e profunda, o leitor tem a mesma curiosidade que marcou o sultão, ex-matador de virgens recém-defloradas, e o filho que ouve o resumo das mil e uma noites da boca da própria mãe no último capítulo do romance: Como? Como foi que tudo aconteceu? Como é que tudo aconteceu?

É este “como” o que melhor define a modernidade da ficção de Betty Milan. Em vez de privilegiar as tramas – oo quê” –, ela nos levanta um dos sete véus sob os quais tudo acontece no mundo do amor e do desejo. O leitor sai com outras interrogações ao final do livro, pronto a formular o desejo de outros modos.

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1. Deonísio da Silva é professor universitário e escritor, com vários livros publicados e premiados. Mantém também uma coluna de etimologia na revista Caras – que já rendeu os populares volumes De onde vêm as palavras e A vida íntima das palavras. Resenha publicada no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Ideias/Livros, 28/01/1995.