O desconsolo da perda

O desconsolo da perda

Revista Veja, 01/09/2010

Por que Don Quixote de la Mancha é o romance mais lido do mundo ? Possivelmente porque o herói só se deixa governar pela fantasia. Nós nos identificamos com o personagem precisamente por ele não querer saber da realidade. Como os personagens de Gabriel Garcia Marquez não querem. Desconhecem inteiramente o limite entre o imaginário e o real.

Quem leu Cem anos de solidão (um milhão de pessoas) não se esquece de José Arcádio Buendia, «cuja imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza e até mesmo além do milagre e da magia». Acreditava  que era possível desentranhar ouro da terra com um lingote magnético. O leitor também não se esquece de Úrsula que, depois da morte de José Arcádio, continuou a encontrá-lo no castanheiro onde ele passou amarrado os últimos anos da sua vida. Úrsula ia no jardim lamentar a sorte dos descendentes, chorar no ombro do marido e se consolar. No povoado dos Buendia, os mortos morrem sem morrer. Por isso, o romance arrebata, e, mais que isso, consola.

O nosso maior desconsolo é a perda do ser amado. Só superamos a tristeza quando entendemos que perder não é sinônimo de não ter. Que o vivo já não está no mundo, mas pode existir em nós. Fazer o luto é entender que a morte não anula a existência, e, sem estar, o morto ainda está. Isso requer tempo. Tanto mais tempo quanto menos ritualizada é a despedida.
Nas sociedades onde existe o culto do ancestral, a morte não deixa quem perde inteiramente desprotegido como na nossa sociedade, que evita falar da morte e não tem tempo para a tristeza, expondo-nos ainda mais aos efeitos negativos dela. Nada é pior do que a tristeza recalcada, cuja açao é sorrateira e as consequências imprevisíveis. Quem não chora o seu morto e não é consolado pelos vivos, fica sozinho com a perda. Num certo sentido, é marginalizado. Por outro lado, quem não tem tempo para o sofrimento alheio, não pode ter relações de amor ou de amizade. Acaba se isolando.

Os personagens de romance encontram soluções mágicas para os seus dramas. Nós somos obrigados a aceitar a realidade, porém nada nos impede de aprender com os personagens a usar a nossa imaginação para viver melhor. No caso do luto, isso significa rememorar os fatos: o encontro, o tempo feliz vivido junto, a solidariedade. Significa rememorar os bons dias na companhia do outro em vez de lamentar a sua falta. Só quem não acredita na própria morte chora continuamente a perda do amado ou do amigo. Só quem desacredita o tempo porque se ilude pensando que a vida não passa.