O brincar e a sintomática cultural brasileira

O brincar e a sintomática cultural brasileira

Congresso Brasileiro de Psicanálise, 1985

 

Se eu sou uma mulher dos trópicos, não o sou inteiramente e, não fosse a imigração que me precede, eu não teria passado da clínica psicanalítica à investigação etnopsicanalítica, a chamada cultura não teria se tornado objeto de uma curiosidade que me anima desde 1978, ano em que, depois de uma longa estada na França, eu voltei ao Brasil.

A partir daí, me tornei particularmente sensível aos fatos reveladores das diferenças culturais. Os pequenos eventos da vida cotidiana me pareceram então mais pródigos do que as dissertações e eu me pus à sua escuta. Cada vez que retornava à França, também me dava conta de como somos diferentes. Um brasileiro não procede da mesma maneira que um francês para ser educado, não vive o amor nem concebe a festa do mesmo modo. A exemplo disso evoco um pequeno episódio da festa da Índia na França, do mela indiano no Trocadero. Chegamos ali de carro e nos parecia dificílimo estacionar. Vejo enfim um lugar e o indico ao condutor, um amigo francês. “– O quê? E a faixa amarela? Multa na certa. – Mas não é dia de festa, pergunto eu. – Sim, e daí? A polícia francesa pouco se importa, respondeu o amigo, multa no ato.” Dia de festa no Brasil, o espaço urbano é invadido, entra por assim dizer em transe, o povo circula e estaciona livremente, se diverte, esquecido da geografia cotidiana das interdições. Percebi então que, à diferença da França, o Brasil nunca se concebe sem esta exceção e passei a valorizar as exceções através das quais ele se constitui, quis saber mais da diferença.

A cultura se tornou o meu objeto; não propriamente a que é produzida por certos ideais sociais resultantes do recalque e que, por sua vez, produz a neurose, mas a cultura gerada pelo recalcado e que supõe o conceito de inconsciente étnico introduzido por Georges Devereux em seu Essais d’Ethnopsychiatrie Générale. O dito inconsciente é o que o sujeito possui em comum com os outros da mesma cultura, e o material dele é o que foi recalcado por mecanismos de defesa fornecidos e reforçados por pressões sociais.

Quando e como este inconsciente étnico gera cultura? Quando os meios defensivos colocados à disposição do indivíduo para o recalque de certas pulsões distônicas se revelam insuficientes. A cultura então fornece certos meios que permitem àquelas pulsões exprimirem-se de maneira marginal. O efeito é uma outra cultura nunca reconhecida como tal e, via de regra, sintomática da diferença de um povo.

A cultura do inconsciente étnico que define uma sintomática brasileira é a que nos interessa. Isso significa detectar os significantes primordiais através dos quais o Brasil se inscreve de modo singular na ordem simbólica; pressupõe a existência de dois Brasis e implica abordar a cultura através do par sujeito/significante. Já aqui podemos demarcar o campo da etnopsicanálise que opera através do discurso.

De saída podemos afirmar que há dois Brasis, um inserido pela Europa no conceito de América Latina e que, não tendo se reconhecido neste, não suporta diferenciar-se da Europa; e um outro que se constituiu no melting-pot das culturas, um país que evoca antes uma América Africana e merece ser chamada de Améfrica Ladina. O herói deste Brasil mestiço que fala português sem esquecer as línguas africanas e o tupi-guarani é Macunaíma, a quem Mário de Andrade se refere assim: “No fundo do mato virgem, nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.”(1) O Brasil que vamos enfocar é o deste herói, é macunaímico porque os seus valores são os daquele e para ambos acima de tudo está o brincar, significante primordial da cultura da nossa língua.

Dado o lugar que ocupa na cultura brasileira e no universo mental que ele molda, o brincar pode ser alinhado junto do fair play inglês, do droit francês, do honor espanhol, que Salvador de Madariaga, meio século atrás, já considerava intraduzíveis.

A cultura macunaímica do brincar não se manifesta através de dogmas como a cultura oficial, mas de um estilo que se diferencia incessantemente evitando toda coincidência definitiva consigo mesma, promove antes a ambivalência, exalta a alegria e solicita o riso. A exemplo, o travesti carnavalesco que se vale do masculino para ridicularizar o feminino, realiza o desejo de ser mulher sendo homem; em outras palavras, faz a sátira da alternativa implícita na diferença sexual, de ser isto ou aquilo para ser isto e aquilo, ambivalente.

A referida cultura que se manifesta no jogo, na festa, na literatura privilegia as associações oníricas e se prevalece dos recursos da elaboração do sonho, particularmente condensação e deslocamento. O que é a mulata rebolando vestida de grega, egípcia ou vestal senão uma condensação? O aspecto físico e o gesto são da mulata, a roupa de grega, egípcia ou vestal. Quanto ao deslocamento, ele preside toda a produção carnavalesca que tira os símbolos do seu contexto usual e os insere noutro, descontextualiza, traz a Estátua da Liberdade ou a Muralha da China para a Marquês de Sapucaí.

Indiferente ao princípio da contradição, o brincar também é indiferente ao tempo cronológico. O Colosso de Rodes, os Jardins Suspensos da Babilônia e as Pirâmides do Egito podem coexistir num mesmo enredo de escola de samba (Beija-Flor, 1981). À diferenca do museu que valoriza as cronologias, o Carnaval faz coexistir as representações de todos os passados, do presente e do futuro, ele é atemporal.

Assim, a cultura do brincar se afirma no ato de recontextualizar os símbolos, não toma nenhum significante como unívoco, dota-o antes de um sentido novo. O seu princípio é o de que tudo é de todos e nessa transação o mundo desabrocha em aspectos até então não revelados. Inadvertidamente sacrílega, não reverencia senão irreverentemente as outras culturas que ela brincando dessacraliza, celebra devorando a diferenca para criar e recriar a nossa identidade. Do Norte ao Sul nós reinventamos a gênese, o mito de Adão e Eva. A literatura de cordel narra-o substituindo a maçã pelo caju, e Joãozinho Trinta em A Lapa de Adão e Eva (Beija-Flor, 1985) faz da banana a nossa fruta do pecado. O samba que diz “a história da maçã é pura fantasia” (Haroldo Logo e Milton de Oliveira, 1954) vale do Oiapoque ao Arroio Chuí, pois, como dizia o poeta modernista Oswald de Andrade, o que nos une é a “antropofagia”. A cultura satírica do brincar é contra a hierarquia e o tabu, hostil ao que está pronto, acabado ou se apresenta como eterno. Interessa-se pelas realizações do resto do Ocidente, mas não se deixa inibir, apropria-se de tudo que estiver à mão. O mundo é dela que é do mundo: nacional, internacional, além de universal.

Sintomática desta cultura que nos diferencia é a devoração, a deglutição das alteridades em que insiste Oswald de Andrade escrevendo: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. Pela antropofagia o Brasil se livra das catequeses. Quem devora o Outro não se transubstancia na comida, incorpora um pouco dela e dejeta um resto fecal. Ademais, não se deixa subjugar por um tabu e a tendência mais brasileira é antes a de reverter o tabu em totem, cultuar totemizando os outros.

O nosso sintoma é a heterofagia, nós nos fazemos devorando as diferentes culturas, e isso também se deve ao povo português, etnicamente indeciso entre a Europa e a África, vivendo com uma perene nostalgia do longe senão do outro. Isso é patente na conduta do português D. Pedro I ao proclamar a independência do Brasil, que ele comemorou mandando trocar a gola do seu manto real feita de pele de arminho por uma de penas de papagaio e de tucano, ave que vive de pilhar o ninho alheio.

A cultura heterofágica do brincar no Brasil é a de todos – criança, adulto, velho ou aleijão – e todos nós nos reconhecemos nela, ainda que seja desconsiderada pelos saberes oficiais, incapazes por exemplo de reconhecer no desfile das escolas de samba a verdadeira epopeia brasileira. Sim, o Brasil épico não se realiza através da literatura, e sim do teatro, da grande ópera de rua que é o Carnaval das escolas de samba. Não se exprime pelo verbo e no ritmo só do verso, porém no compasso da batucada, do canto e da dança; ele é visual e musical; e só por diferir da forma consagrada pela tradição ocidental não foi devidamente valorizado.

A cultura oficial apresenta o Carnaval como manifestação folclórica e nunca como expressão radical da brasilidade, ou então, para efeitos turísticos, mostra a festa mediante uma série de imagens sempre idênticas, onde só a identidade entre o Carnaval e o sexo convida à viagem. O fato carnavalesco anula-se na reportagem jornalística. Em vez do gozo do ritmo, é só o gozo do sexo, suspensão do ritmo num flagrante que torna o corpo obsceno. A boca que o sambista abria no canto e era a da alegria, vista no jornal requer o falo ou a língua. O traseiro empinado na dança para melhor requebrar, na fotografia sugere só o ato de penetrar.

Se na realidade o ritmo fragmenta o corpo do carnavalesco, que se entrega a todas as suas partes e não está em nenhuma e deixa que a música o penetre por inteiro, a fotografia recorta-lhe o corpo para fisgá-lo pornograficamente numa das suas partes. Viola-se o folião que na festa se exibia para fazer o outro olhar e se exibir, transforma-o num exibicionista enquanto o leitor é voyeurista, perversos os dois. À diferenca do Carnaval, que esvazia a ideia de perversão, a imprensa a elege e sacraliza.

Se o gesto do Carnaval evoca o sexo, é mais para evocar, é a corte sem palavras, do e para o corpo. Ali reina a liberdade porque o gesto do sexo não obriga a transar. O sambista provoca no sentido de atiçar o desejo. O fotografado no jornal, para desafiar a transar ou censurar.

O nu carnavalesco é inocente, como aliás a fantasia, que mais serve para desnudar, precário biquíni melhor indicando o seio, seu bico ou contorno, sublinhando o púbis para tudo entregar ao sonho e ao samba. O que na festa era ambiguidade e volúpia pura desaparece na reportagem, na monotonia dos gestos prefixados. O que era sexo sonhado se torna programado e é a unicidade do sentido.

A tal ponto a cultura oficial ignora a outra, que Oscar Niemeyer construiu o chamado sambódromo sem que um só dos carnavalescos fosse consultado. O arquiteto, supondo que a referência da nossa ópera de rua é a ópera tradicional, imaginou declaradamente um gran finale e abriu a passarela no espaço da apoteose. Isso eu deduzi através da escuta dos sambistas. Pavarotti adora Pelé, mas a nossa elite desejaria que a cultura de Pelé fosse a da ópera lírica e não a do brincar.

Assim, ser brasileiro é viver dividido entre um país que, se querendo Um, quer reduzir a multiplicidade dos outros e um país contrário a essa tendência, cuja vocação é a de deixar ser o outro e, através dos vários outros, vir a ser. O primeiro país é nacionalista e, à maneira do resto do Ocidente, pode ser dito do “isto ou aquilo”, alternativa onde vê a sua seriedade. O segundo país é diferente, ele diz “isto ou aquilo” e ainda “isto é aquilo”. À moda aliás dos orientais, descrê do princípio da não contradição, é adepto de todos os santos e de todas as crenças, é como o chinês que pode fazer Lao-Tsé, Confúcio e Buda coincidirem, como o japonês que pode ao mesmo tempo ser xintoísta e budista.

O Brasil do isto ou aquilo produz uma cultura só concebida através da imitação pura e simples, considera que é inculta e sem educação a mão mestiça, que é néscia e primitiva a língua do batuque que falamos, que é grunhido, coisa de animal. Não é preciso mais para perceber que o sujeito infeliz desse discurso não reconhece a sua identidade na realidade que o circunda. Assim, por exemplo, um eminente escritor jornalista brasileiro (José Carlos de Oliveira) escreve sobre a impossibilidade de resistir ao Carnaval e se pergunta como ser brasileiro e ser sério, acrescentando que o tema do coração dividido o preocupa. A sua questão é a de quem não reconhece a seriedade do brincar, porque só acredita nos países onde ele não é tido como sério; adora brincar, mas prefere o censor. Incapaz de perceber que nos países “sérios” a diferença nem sempre é tida como séria, que se pode falar de direitos humanos sem reconhecer os direitos do outro, este sujeito menospreza a cultura do brincar e, para resolver o conflito, se divide dividindo o Brasil, o dele que é sério e o de Momo que é apenas o outro, um parêntese na sua existência. Assim ele se livra da vergonha que a frase de Charles de Gaulle lhe impingiu: “Le Brésil n’est pas un pays sérieux”. Melhor teria sido livrar-se do que não é sério no Brasil.

O eixo Rio–São Paulo se identifica na mesma crise de identidade, onde bem podemos reconhecer um certo sujeito brasileiro procurando se espelhar num espelho de que não dispõe, imaginário, e espelhando-se realmente num espelho que ele recusa. Sujeito impossível que se despreza e detesta a sua realidade; que, para se curar de si, imita o outro, e, para escapar ao país, entrega-se à denegação. Para ele os trópicos são efetivamente tristes. Sua referência exclusiva é Lévi-Strauss; a barbárie e a decrepitude são apanágios dos trópicos enquanto madureza e civilização o são da cultura europeia. Se o trópico se aproxima do modelo dessa natureza civilizada, ele se salva; do contrário, é uma triste figura e se terá que salvá-lo. Não é preciso mais para deduzir a multiplicação dos Quixotes nacionais.

Por felicidade, entretanto, há no país um outro sujeito que não duvida da sua identidade, sabe afirmar satiricamente Yes, nós temos banana, valoriza o patrimônio cultural de que dispõe e o estilo que o constitui. O sujeito em questão é ladino por saber da manha, mas ainda porque sabe do trabalho. O ladino entre nós é aquele que sabe fazer, sabe viver, tem a art de vivre, se diria dele em francês que vive parodiando os grandes mitos ocidentais. Tudo que a cultura mitifica parece vacinado contra as inquisições exteriores, porque recusa as ideias objetivas, cadaverizadas, o stop do pensamento que é dinâmico. A cultura do Ocidente o interessa, ele se deixa apropriar apropriando-se dela, afirmando sistematicamente que isto não se opõe àquilo, isto é aquilo.

O sujeito em questão se concebe através da negritude, opondo-se ao país institucional que ele taxa de louro, afeto à cópia e à retórica. Isso é patente num dos nossos antigos sambas que se referia a um político conhecidíssimo e à sua derrota eleitoral, Rui Barbosa, que chegou mesmo a ensinar inglês aos ingleses: “Papagaio Louro/ do bico dourado/ tu que falas tanto/ por que razão/ vives calado?”.

O país ladino vive satirizando o outro que o nega, ele brinca sem culpa, aplicado, sério na sua inocência. O país oficial vive denegando a realidade, não brinca e também não é sério.

Razão demais para privilegiarmos a cultura do brincar e nos situarmos nos lugares onde ela pode ser ouvida. O que significa isso? Insistir no que é tradicional valorizando a sua diferenciação permanente, ao contrário da cultura oficial que promove a repetição. Ouvir o discurso do brincar na literatura e o discurso do samba, retomando mesmo um projeto de Jorge Amado: um livro cujo título era Samba, ensaio sobre a raça, para mostrar que enquanto a elite brasileira requentava a política europeia o povo já havia criado o seu denominador comum através das festas, cantos e danças, e que o samba era a síntese desse processo. Pandeiro, tamborim e reco-reco, o samba é a música que a nossa mão produz, o pé dança instigando pernas, braços, ancas. A boca brasileira canta. O samba produz-nos o corpo e por isso talvez digamos que ele é o orgulho da raça. Ideia maior da nossa cultura, música que assimila todas as representações, absorve e organiza o que nos chega do resto do Ocidente e do Oriente. No seu ritmo, produzimos o Carnaval, prática que contraria os tabus das várias culturas para fazer-nos dizer que somos brancos e negros sem o sermos inteiramente.

Sou África? Sou, sim senhor, fiz dela terra minha. Assim poderia se exprimir o Carnaval na abertura do desfile das escolas de samba. Atabaques, agogôs, cânticos kêtu e nagô, homens e mulheres negras, de branco todos, são os filhos de Gandhi inaugurando a festa. Ali, como nos terreiros, vão cultuar Oxalá, levantar os braços como espadas em memória de Ogun, dançar à moda faceira de Oxun. Ali vão entregar a todos os brasileiros os deuses africanos, que nós entre tantos outros ídolos queremos adorar.

Sendo brasileiros somos também de outros lugares. Quem brinca se distancia de si, reinventa-se alhures, torna-se personagem de um cenário produzido no ato de brincar. O folião sai de um para outro país, à sua maneira ele imigra; sem saber exatamente para onde vai, entrega-se à aventura de ir, sabe do desterro e do mar, o nômade é o outro que no caminho ele consigo quer… os nômades todos da terra inteira, os imigrantes, samba do árabe ou do japonês, babouch ou kabuki. De uma legião de estrangeiros se faz esse Brasil, que é avesso ao nacionalismo e é nacional abrindo-se para o outro, integrando todas as nações. Dele saíram Macunaíma e Dona Flor, Jorge Amado ou o maior dos nossos ensaístas, Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala. Só isso permitirá entrarmos brasileiramente na modernidade, insistindo como a escola de samba no trabalho, sem menosprezar a criatividade, o encontro e o riso.

 

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Congresso Brasileiro de Psicanálise (também conhecido como Congresso da Banananálise), Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, 1985.

(1) Andrade, Mário de. Macunaíma. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.