O Brasil no imaginário dos portugueses
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi publicado como
“A aventura da dissidência”, Folha de S. Paulo, 7/05/2000
Para saber como o Brasil figura no imaginário dos portugueses e como a nossa cultura influencia a deles, entrevistei seis escritores no Salão do Livro de Paris de 2000, onde Portugal foi o país convidado de honra por causa da comemoração dos 500 anos do Descobrimento.
Os escritores são Maria Isabel Barreno (As novas cartas portuguesas), Maria Velho da Costa (As novas cartas portuguesas), Almeida Faria (Tetralogia lusitana), Helder Macedo (Pedro e Paulo), Antonio Lobo Antunes (Os cus de Judas) e Nuno Júdice (Um canto na espessura do tempo).
O texto da entrevista mostra que o Brasil é uma razão de orgulho para Portugal, além de ser visto — pela liberdade sexual existente entre nós — como uma terra da promissão.
BM: Nós comemoramos 500 anos do Descobrimento do Brasil. Qual a importância do Descobrimento para Portugal?
ISABEL BARRENO: Portugal foi o país que, no século XV, retomou a vocação que a Europa sempre teve. O Brasil foi a grande descoberta portuguesa e até hoje ela é importantíssima no imaginário português. O Brasil é o filho primogênito. A cultura portuguesa tem a vocação do internacionalismo, toma a cor do lugar onde chega, e no Brasil isso foi possível. O Brasil é a joia da colonização europeia, porque é o país onde houve a maior mistura de culturas e o nascimento de uma cultura própria.
MARIA VELHO: Gostaria de inverter a sua questão relativa à importância do Descobrimento do Brasil para Portugal e perguntar qual a importância do descobrimento de Portugal para o Brasil.
ALMEIDA FARIA: O Brasil foi o nosso Eldorado, trouxe muitas riquezas. Portugal viveu durante séculos graças ao Brasil. Mas não é só isso. A coisa mais importante que os portugueses fizeram foi o Estado do Brasil, e ter feito isso, ter tido o talento político, é fundamental para nós.
HELDER MACEDO: O Descobrimento do Brasil foi decisivo para nós, porque a identidade portuguesa se manifestou melhor nos territórios descobertos. Os portugueses vivem encurralados no seu país. Quando saem, se liberam. Os que foram para o Brasil desobedeceram às ordens da metrópole e não houve como impedir isso. Quero crer que o Brasil foi possível precisamente porque o controle do território era impossível. A sabedoria colonial portuguesa está na criação do que se pode chamar de “governo à revelia”. O Brasil se tornou para Portugal uma aventura da dissidência. Há uma relação profunda e ambivalente entre Portugal e Brasil, uma relação extremamente positiva, porque ela é crítica.
LOBO ANTUNES: A história do Descobrimento do Brasil é uma chatice que eu tive de aprender na escola… O Brasil foi importante na minha vida por causa da minha família, das tias velhas. E também por causa de José de Alencar e Aluísio de Azevedo, cujos livros figuravam na biblioteca de casa.
NUNO JÚDICE: O Brasil continua a ser uma espécie de terra da promissão no imaginário português. Isso está relacionado ao fato de ser ainda, no século XIX, uma terra de imigração. As casas ricas de Portugal são as casas dos brasileiros, sobretudo no norte de Portugal. Além do aspecto material, há outro, ligado à ideia do Brasil como possível refúgio, exatamente como na época da invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. O Brasil é um possível refúgio por causa da língua e da cultura.
BM: A influência através da telenovela da língua portuguesa falada no Brasil sobre a língua portuguesa falada em Portugal é ou não considerável? De que forma ela se manifesta?
ISABEL BARRENO: Manifesta-se no vocabulário e na construção das frases. A influência é considerável e é bom que assim seja, porque uma língua vive do diálogo entre as suas variantes. O português de Portugal se modificou com a escuta do português do Brasil. Pode-se mesmo dizer que a televisão nos aproxima. E isso vale tanto para o aspecto linguístico quanto para o aspecto cultural. É impressionante a modificação que houve no nível dos valores, sobretudo dos valores morais. A televisão brasileira permitiu superar muitos tabus sexuais. O da necessidade de se casar virgem, por exemplo. Me lembro de uma mulher que eu encontrei na Costa da Caparica me dizendo que havia aprendido muitas coisas com as telenovelas, sobretudo a defender os seus direitos.
MARIA VELHO: A influência da língua portuguesa falada no Brasil não se manifesta, você percebe na maneira de pronunciarmos o português. Porque nós continuamos a fechar as vogais. Acho que é no nível da mentalidade que a telenovela atua. Mas não é nada preocupante.
ALMEIDA FARIA: A telenovela influencia inclusive os intelectuais. Tenho a esperança de que vai melhorar a pronúncia portuguesa. Se conseguíssemos abrir novamente as vogais já seria ótimo. Qualquer estrangeiro entende muito melhor o português do Brasil.
HELDER MACEDO: A influência da telenovela é considerável, mas não é profunda. Há palavras que deixaram de ser usadas… A vantagem é habituar o ouvido dos portugueses à maneira de falar o português no Brasil. Isso faz os portugueses entenderem que não são donos da língua. Acho ridículas as tentativas de acordos ortográficos. Seria mais interessante criarmos dicionários com as variantes. Mesmo porque as diferenças entre o português de São Paulo e de Pernambuco são tão grandes quanto as diferenças existentes entre Lisboa e Rio.
LOBO ANTUNES: Manuel Bandeira dizia que no Brasil se macaqueia a sintaxe lusíada…
NUNO JÚDICE: Durante algum tempo, se disse que a língua da telenovela ia destruir o português, mas eu penso que uma língua vive do contacto com outras, e a variante brasileira pode dar uma outra qualidade ao português de Portugal. Ademais, para além da língua da televisão, existe a língua literária, o modo como os escritores trabalham com ela.
BM: A literatura brasileira teve ou não uma influência sobre a literatura portuguesa? Tendo a achar que existe uma relação entre o movimento modernista brasileiro, que preconizava a desobediência gramatical, e a literatura portuguesa contemporânea, que é desobediente.
ISABEL BARRENO: A língua portuguesa sempre gozou de uma liberdade enorme. Aquilino Ribeiro, por exemplo, pôs-se a inventar palavras. Tanto na prosa como na poesia, sempre houve em Portugal o gosto de inventar novas formas de escrever. Sempre, desde o modernismo português, na década de 1920.
MARIA VELHO: É difícil saber quem influenciou quem, dizer quem a galinha e quem o ovo. Gil Vicente já tinha muita fantasia. Penso que a grande novidade da ficção de língua portuguesa foi Guimarães Rosa, ele é o Joyce da nossa língua.
ALMEIDA FARIA: O neorrealismo português — uma espécie de realismo socialista das décadas de 40 e 50 — foi muito influenciado pelo romance nordestino, o de Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego. Praticamente, fui eu que acabei com o neorrealismo fazendo um romance diferente. Os poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, também influenciaram muito os poetas portugueses no passado.
HELDER MACEDO: A influência da literatura brasileira sobre a portuguesa foi profunda. Quando jovem, eu lia os autores brasileiros, porque eles é que escreviam em língua portuguesa o que os portugueses não podiam escrever por causa da repressão. Nas colônias portuguesas, Jorge Amado era lido como se ele fosse do país. E a poesia brasileira também teve uma influência imensa. Carlos Drummond de Andrade foi um dos poetas mais importantes para a formação da poesia moderna portuguesa. Os nossos surrealistas devem muito mais a Drummond do que a Breton. O Manuel Bandeira é um poeta que todos nós sabíamos de cor. Depois, a partir dos anos 1960, os portugueses deixaram de ler os brasileiros. O porquê eu não sei. Hoje há, nas gerações mais novas, uma profunda ignorância sobre a literatura brasileira, o que é criminoso.
LOBO ANTUNES: Não sou crítico e não sei dizer se a literatura brasileira teve ou não influência sobre a literatura portuguesa. Seja como for, é raro encontrar escrevendo ao mesmo tempo poetas como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Mário Quintana, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinicius de Moraes, Cassiano Ricardo…
NUNO JÚDICE: Até os anos 1960, há uma presença grande da literatura brasileira em Portugal. Os livros brasileiros circulavam em Portugal. A Livros do Brasil foi muito importante nisso. Na poesia, a influência também foi decisiva. Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles… Agora, as realidades portuguesa e brasileira são muito diferentes, e as literaturas refletem essas diferenças. O fato de ser a mesma língua para traduzir realidades tão diferentes constitui obstáculo.
BM: A presença da literatura portuguesa — autores e livros — no Brasil é, na verdade, irrelevante, e a recíproca é verdadeira. Como estreitar os laços entre portugueses e brasileiros e entre os lusófonos dos diferentes países?
ISABEL BARRENO: Isso faz parte das coisas que eu não entendo. Houve um tempo em que havia mais livros brasileiros em Portugal, e eu tenho a esperança de que haja novamente um intercâmbio cultural.
MARIA VELHO: A literatura brasileira foi muitíssimo lida em Portugal nos anos 1960, as pessoas a devoravam. Jorge Amado, por exemplo. Agora, a questão da difusão é uma questão de marketing, não é uma questão literária.
ALMEIDA FARIA: Acho que é um problema alfandegário. Os livros não deveriam pagar tarifas tão altas.
HELDER MACEDO: A política editorial é que precisa mudar. Os meus livros editados em Portugal são vendidos no Brasil por 50 reais, quase a metade do salário mínimo. É um absurdo. A partir do momento em que os livros foram editados no Brasil, eles passaram a custar 25 reais, o que já torna a aquisição mais viável. O mesmo acontece em Portugal. Enquanto portugueses e brasileiros não chegarem a um acordo de coedição, vai ser bem difícil.
LOBO ANTUNES: Isso não me preocupa, não me interessa.
NUNO JÚDICE: A presença do escritor é muito importante.
BM: O que pode a cultura de língua portuguesa oferecer de original ao mundo no próximo milênio?
ISABEL BARRENO: A cultura de língua portuguesa tem o senso do diálogo, ela é muito menos imperialista do que as outras culturas europeias. O que é importante nela é a consideração do prazer da vida, que o economicismo predominante nas culturas do norte da Europa tende a desvalorizar. O gosto do corpo, a sensualidade, o apreciar o tempo que passa, o deixar as coisas acontecerem em vez de programar tudo.
MARIA VELHO: Nada temos a oferecer. Quando muito uma maior variedade sintática e vocabular. Do ponto de vista cultural, temos a miscigenação — a que a pobreza nos legou — e uma moralidade menos rígida, ou uma saudável imoralidade.
ALMEIDA FARIA: A nossa contribuição é na área da literatura e da música. Além disso, existe no Brasil uma experiência da sexualidade que é feliz. Portugal teve a Inquisição durante séculos, mas o Brasil estava longe do poder central.
HELDER MACEDO: Dentro da nossa língua há algo interessante, a profunda diversidade. O castelhano, que tem mais falantes do que o português, é uma língua de dois continentes, Europa e América do Sul. O português é de três continentes, porque também é falado na África.
LOBO ANTUNES: Não sou filósofo e não faço a menor ideia do que a cultura de língua portuguesa possa oferecer.
NUNO JÚDICE: O que temos de melhor é a capacidade de adaptação e a capacidade que a língua tem de viver em espaços e em sociedades tão diferentes. O português tem uma plasticidade maior do que as outras línguas europeias. Mesmo com as alterações que sofreu no Brasil e na África, ele resiste e continua a ser lido como uma língua única.