O Brasil na França II
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, reúne artigos com os seguintes títulos e datas:
“Depois do Salão do Livro e às vésperas da Copa”, Folha de S. Paulo, 22/05/1998
“Joãosinho Trinta leva a apoteose brasileira ao Jardin des Tuileries”, Folha de S. Paulo, 11/07/1998,
e “A nossa vitória paradoxal”, Folha de S. Paulo, s.d.,1998
ÀS VÉSPERAS DA COPA DE 1998
O Brasil entrou em cena na França em 1998 de modo espetacular por meio de três imagens.
A capa do Le Figaro Magazine onde Ronaldo, diante de uma bola de pedra, posava para a eternidade. Uma posição que tanto evocava o pensador de Rodin quanto o discóbolo de Miron, evidenciando que entre o espírito e o corpo não há contradição.
Assim fotografado, Ronaldo simbolizava um futebol para o qual o impossível não existe, o de um Leônidas, de um Garrincha ou de um Pelé — o futebol brasileiro. Le Figaro Magazine,aliás, publicou que, aos 21 anos, Ronaldo já fez esquecer Pelé.
A segunda imagem impressionante era a da foto de página inteira do Le Monde sobre o show de Gilberto Gil no Olympia. Tratava-se de um atabaque que duas mãos estavam prestes a tocar. Duas mãos cuja particularidade era a de serem negras e estarem à mercê da música — porque a foto não mostrava de quem elas eram.
No alto da página do Le Monde, lia-se que, para o percussionista Naná Vasconcelos, bater num tambor é um gesto de engajamento. E o coração então batia, porque era a cultura engajada do Brasil que ia desembarcar.
A terceira imagem espalhava-se pela cidade inteira. Era a dos cartazes com uma foto de Gilberto Gil que imediatamente comovia, pois víamos que era grisalha a sua carapinha, e o sorriso era de mãe de santo, tão sereno quanto generoso.
Nesses cartazes que divulgavam o show do Olympia,o que mais impressionava, no entanto, era o que estava escrito embaixo do nome do compositor: Ao vivo na Copa de 98. Porque, pela primeira vez em duas décadas, o texto estava em português — língua que não era oficial na Comunidade Europeia.
A gente lia e relia considerando que o português chegou em Paris graças aos músicos brasileiros. Como não lembrar de uma das muitas verdades de Caetano Veloso em Verdade tropical: “A música é a mais eficiente arma de afirmação da língua portuguesa no mundo”?E a nossa língua também chegou por causa dos jogadores de futebol e do autor estrangeiro mais lido na França: Paulo Coelho, cuja identificação com a nossa cultura popular ninguém ignora.
Só resta concluir que, se a nossa literatura um dia efetivamente se impuser na França, será porque tivemos um Pelé, um Gilberto Gil e um Paulo Coelho. Porque o Braaasilll! foi a nossa locomotiva, a bola não parou de rolar nem o samba de tocar, porque houve um escritor brasileiro que entendeu o processo de globalização.
O nosso abre-caminho é o Braaasilll!
CARNAVAL NO JARDIN DES TUILERIES
Joãosinho Trinta nunca deu ponto sem nó. Copa de 1998? Brasil possível pentacampeão? Havia chegado a hora de mostrar ao mundo que futebol é cultura e a cultura especificamente brasileira — a do brincar — é universal.
O carnavalesco então imagina um desfile cujo tema é a história universal do futebol e deve se desenrolar mostrando que o jogo já existia na China de Confúcio, entre os astecas, na Grécia antiga, na França medieval e entre os índios brasileiros, que jogavam com uma pelota feita de látex. Ou seja, um desfile que dê a entender o quão indissociável a civilização é da cultura do jogo — tese central de Huizinga no Homo ludens — e o quão sério o Brasil é por valorizar o brincar.
A ideia é pertinente, e o desfile realizado no Jardin des Tuileries — no eixo histórico de Paris, que vai da igreja de Notre-Dame ao Arco do Triunfo, passando pelo Louvre — foi um sucesso, malgrado o descaso habitual das instituições culturais brasileiras e as falhas como, por exemplo, a falta de alto-falantes.
Três carros alegóricos figurando a China — através da estátua de Confúcio —, a Grécia — através do templo grego — e os índios — através de uma gloriosa sereia — atravessaram o jardim em direção à Place de la Concorde.
As nossas alegorias coloridas de isopor passaram animadas por suntuosos destaques, diante das estátuas de pedra do Jardin des Tuileries. Com as plumas e os paetês, o Brasil exibiu o seu tradicional culto do efêmero e deixou estar ao seu lado o culto da eternidade. Ousou exibir o museu vivo do Carnaval no contexto do glorioso Louvre. Reinventou a China mostrando Confúcio com uma bola no pé.
A um arco-íris de cores tênues, o de Paris, contrapôs um arco-íris de cores tórridas, solar. Às linhas retas do jardim, as curvas de Valéria, a Globeleza, que passou coberta de estrelas de purpurina e desafiou, com o rebolado, as mulheres apolíneas do Lido.
Quem, vendo Ronaldo jogar, ainda não estava convencido de que um novo Renascimento acontece no Brasil, deu a mão à palmatória. Quem ainda não sabia que o país vitorioso é o do Carnaval e o do futebol, o Braaasilll!, já não podia ignorar isso e entendeu por que havia no Jardin des Tuileries uma faixa com: Brasil urgente, Zagalo presidente.
Joãosinho fez a Marquês de Sapucaí renascer triunfalmente no jardim de Le Nôtre, arquiteto de Luís XIV. Com isso, o Brasil se realizou no cenário do Rei Sol, que ele todo ano reinventa entre outros reis. E Paris, que à sua maneira também é antropofágica, vibrou deixando estar as nuanças todas do amarelo solar brasileiro no contexto do verde e das flores cor lilás.
Cumpriu-se então a profecia do Balé da bola, a música que abriu o grande Show da Copa 98 no Olympia:
Quando o meu olhar beijar Paris,
Terei mais amor
Serei mais feliz
Gilberto Gil
O Brasil e a França se beijaram sem parar na Copa de 98 e, por isso, nós ganhamos. A nossa bandeira pôde ser vista nas ruas, no metrô e nos bares, as nossas cores estiveram na moda. Já ninguém dizia, como no passado, que a combinação verde e amarelo ou verde e rosa é aberrante.
Com o Brasil, também a Cidade Luz ganhou, exibindo os seus cenários coloridos e o rio furta-cor, provou que ela é mesmo uma festa — como dizia Hemingway —, ou então que ela não acaba nunca.
A NOSSA VITÓRIA PARADOXAL
O Brasil perdeu a taça, mas ganhou o mundo, porque os nossos valores se impuseram. Até o último jogo, o símbolo da Copa foi Ronaldo e, através dele, a figura do mestiço esteve continuamente presente.
O Brasil mostrou que respeita os seus ancestrais, entregando a Zagalo o comando da Seleção. E Zagalo deu a entender, chorando depois do jogo contra a Dinamarca, que um homem também pode chorar.
A cultura antropofágica brasileira tomou a França e, a cada vitória, os franceses se fantasiaram de franceses enrolando-se na bandeira. Como nós durante o Carnaval, exibiram-se mascarados. Valeram-se do próprio rosto para pintar a sua máscara — exaltar sempre as três cores da bandeira: azul, branca e vermelha. Quando a vitória enfim soou para eles, Platini na tribuna dançou em ritmo de samba.
Como no Brasil, pela primeira vez o povo ocupou o espaço urbano, transitou esquecido da geografia cotidiana das interdições. As ruas se transformaram em passarelas da comunhão nacional. O carro de bombeiro passou como um trio elétrico, apinhado de gente. E, atrás dele, só não foi quem já tinha morrido. Nos hotéis mais sofisticados, ouviram-se apitos e buzinas. Nos grandes restaurantes, os chefes saíram da cozinha para celebrar com os garçons e os clientes. Mais pareciam fantasiados de chefes.
A Copa foi positiva para o Brasil e para o mundo, porque, através dos seus dramas, nos fez passar pela experiência de que todo homem tanto pode vencer quanto perder; ela nos tornou mais humanos.
E foi positiva por muitas outras razões. Porque — como na Grécia antiga ou no Renascimento — valorizou a força humana, colocando em cena, por exemplo, gigantes como Ronaldo, David Beckham, Zidane… Fez comungar os velhos, os jovens, os homens, as mulheres, os ricos, os pobres, a esquerda e a direita. Lembrou repetidamente que o talento não depende da raça e que a vitória conquistada através dele é a melhor. Noutras palavras, que a pátria do talento é indiferente à origem natural, racial e social, e é por isso que ela serve à nação. Quem hoje duvida da façanha da França depois da sua vitória que resultou da aposta na solidariedade, no esforço e na criatividade?
E esta Copa terá sido grande porque legitimou a paixão tão brasileira do jogo, mostrando que ele mais pode pela nação e pela educação do que os discursos rebarbativos dos educadores. Ninguém fez mais pela educação do que os juízes que apitaram as faltas e fizeram a regra do jogo vigorar. Pisar sobre a cabeça alheia? Nunca. Cartão vermelho para Zidane. Quem orquestrou na França a resposta popular e coletiva ao racismo não foi um político, e sim o chefe da equipe francesa, o filho de um açougueiro, chamado Jacquet. Com a Copa de 1998, ficou claro que o jogo é um grande recurso civilizatório.
A França, que parecia enlutada, coloriu-se e resplandeceu, ensinando o quanto vale sacrificar-se por uma equipe ou por um grupo social e o quanto um país deve apostar na sua tradição. Só ganhou do Brasil porque ele se esqueceu de que, para ser sério, deve brincar e de que, para brincar, é preciso ser muito sério.
Quem teve o privilégio de estar em Paris na final viu a cidade se alegrar como nunca antes, desde a festa da sua liberação da ocupação nazista em 1944”. Nem mesmo na festa do bicentenário da revolução francesa (1988) a manifestação do povo foi tão espontânea quanto na final.
Embora o samba fizesse falta, Paris foi uma festa, renasceu para a sua riqueza maior, que é a da confraternização das culturas e das raças. Ressurgiu protegida pelo anjo dourado do Chatelet.
Pela primeira vez em duas décadas, um desconhecido me abraçou na rua. Talvez porque eu estivesse de azul — a cor que tanto existe na bandeira francesa quanto na brasileira. Talvez… O fato é que o desconhecido era um negro e eu me senti tão bem quanto num país tropical.