O ato aberrante
Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
foi apresentado no III Encontro Brasileiro do Campo Freudiano,
Salvador, Bahia, 14-18/07/1991, e publicado na edição especial
“O que pode um analista?”, revista Vozes, 1991, pp. 239-245
para Ivete Villalba e Maria Lucia Baltazar
O que pode o psicanalista senão o que ele deve? mas o que deve corresponde ao que fez? Uma questão que ele não cessa de se colocar. Sobretudo quando seu ato é aberrante, seja do ponto de vista do senso comum, seja do ponto de vista das regras analíticas.
O ato aberrante de que eu aqui vou tratar data de 1979, ano em que, por voltar da França para o Brasil, interrompi a análise da senhorita L. Dizia-se alcoólatra e saiu da última sessão levando uma garrafa de vinho Chateauneuf du Pape com que a presenteei. Nem a convicção de que eu devia ter dado o presente nem o comentário do controlador, Jacques Lacan — “Vous avez de la bouteille.” —, bastaram para que eu deixasse de pensar no ocorrido. Foi necessário reconsiderar os fatos para encontrar a razão de meu ato, concluir que era imaginária a aberração e que a regra da abstinência, como todas as outras, precisa ser analisada à luz de cada caso.
L. me procurou porque a analista anterior, que não a impedia de ir bêbada à sessão, um belo dia a pôs no olho da rua. Disse-me, logo de saída, que tinha dificuldade de falar, que por isso bebia ou tomava Mandrix e o que ela esperava da análise era poder falar sem bebida ou remédio. Por outro lado, evocou a mãe, que era médica e só acreditava nos medicamentos, e opôs implicitamente o analista ideal à mãe, que surgia associada ao Mandrix e à bebida.
L. não era uma alcoólatra no sentido clássico, mas não negava que bebesse. Podia não beber se tivesse em perspectiva uma sessão e afirmava não ser dos que são obrigados a sair do cinema para se encharcar, embora esvaziasse qualquer garrafa que visse. Sobretudo, não era uma verdadeira alcoólatra por restabelecer uma relação entre a bebida e a palavra, que a levou para a análise e aí sustentou o trabalho.
Que o analista fosse o depositário da sua confiança eu logo soube por ouvir que, respondesse ele ou não, a impressão era de que ele mentia. O analista era, pois, capaz da verdade. Fiável certamente, mas porque ela transformava qualquer recusa em resposta a uma demanda — pedindo que eu não respondesse a nenhum de seus pedidos. Noutras palavras, o meu não satisfazia à demanda, embora deixasse insatisfeito o desejo, o não equivalia a um sim e o sim obviamente eu não podia dar — esta a lógica da situação em que eu estava implicada. Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Impedida, na verdade, de falar.
Sim, como aliás L., conforme deduzimos de uma sessão em que se referia à ex-analista. “O que eu faço com você”, me diz a analisanda, “é o luto da outra. Mas falo tanto dela, do luto, da morte, que eu temo uma expulsão”. Ou seja, o paradoxo de ser expulsa pela análise, caso aí dissesse o que de fato lhe importava.
Ir à sessão para não falar do decisivo ou simplesmente para não falar, como inferimos do seguinte dito: “Meu pai exigia sempre que eu me calasse e eu tenho a impressão de que isso vai se repetir aqui”. Proibição da própria fala, que se torna, pois, o objeto do desejo.
“Cala-te”, e é a própria palavra que deve ser engolida em seco. Alguma relação entre esta palavra proibida e a bebida que L. engole? Precisamente porque a bebida lhe abre a comporta das palavras, podemos afirmar que a relação existe e, mais ainda, que a bebida é uma solução de compromisso. Por duas razões. Por um lado, com o álcool, L. não engole em seco, e, por outro, engole sem deixar de falar, obedece desobedecendo ao pai.
Solução de compromisso a ser superada. L. então não procura a análise porque quer falar sem beber? sem atender ao pai? Tornar-se sujeito do significante, e não mais se sujeitar à proibição paterna?
Não à bebida, que então se associaria de maneira nova à palavra. A ideia desta associação nova e a informação posterior — de que L. na infância ingeria sem discriminação tudo o que encontrasse na geladeira — me levaram a valorizar a palavra “degustação” quando foi introduzida na análise e depois me levou a dar o Chateauneuf du Pape, conduta que me pareceu necessária, embora eu desconhecesse a razão do ato, razão só depois encontrada.
Quando, sob o impacto da última sessão e do controle, passei a refletir sobre o sentido da palavra “degustação”, a demanda explícita de L. de que eu não respondesse à sua demanda e o próprio fato de ter dado o vinho em vez de reconhecer o desejo de degustar, pontuando-o simplesmente. Noutros termos, o risco que eu corria presenteando estava relativizado, mas da razão disso eu ainda não dispunha, agi sabendo do meu não-saber. A tática contrariava a regra do não-agir, mas o modo de proceder era conforme ao do analista. Quer isso dizer que este modo é tal que ele pode negar as regras da ação analítica? E que aí se origina a sua invenção? Voltemos a L.
A história desta analisanda que bebia até não poder mais, até o dégout, e que, na véspera do penúltimo encontro, sonhou que eu lhe dava uma garrafa de vinho para degustação, me fez focalizar a palavra que vem do latim degustare que, por sua vez, vem de gustare. Degustar é pois gustare precedido do prefixo de, que marca o afastamento, a privação de um estado. Ou seja, quem degusta priva-se num certo sentido de comer e beber. Ademais, a degustação implica um discurso que versa sobre o objeto da mesma. Isso quer dizer que ela é indissociável da palavra, ao contrário do simples beber e comer, e que L. só passaria à degustação abandonando a posição em que bebia até não mais poder e bebia para falar.
Que a degustação fosse o indício de uma mudança decisiva era certo, porém, eu só o percebi claramente quando L. me contou o sonho em que eu a presenteava. Não bastaria então que eu tivesse cortado a sessão no ponto em que o desejo se explicitava? L. teria se escutado verdadeiramente? E eu, me repetindo sem saber por que essa pergunta, fui comprar o Chateauneuf. Possível que o controlador me censurasse, talvez até me valesse a expulsão da Escola Freudiana de Paris, só que eu não tinha alternativa. Oferecer, pois, o estranho presente, que não me valeu a censura do controlador nem a expulsão da instituição, mas só depois se esclareceu — quando a pergunta se tornou: L. teria se escutado verdadeiramente através de uma analista impedida de falar?
O ato é aberrante porque, através dele, eu podia sancionar o desejo sem contrariar frontalmente a demanda de não responder a nenhuma demanda. Ademais porque, sendo ele aberrante do ponto de vista do senso comum, só podia deixar perplexa a analisanda, que levaria o Chateauneuf du Pape, mas teria que se haver com o seu dito. L. recebeu um enigma para cuja decifração precisava se perpetuar no discurso analítico. O presente era necessário para dar à degustação sua devida importância e para que a analisanda, se despedindo, pudesse procurar outro analista. Não era, pois, o não-agir, e sim o agir que a podia guiar em direção à realização da sua verdade, e o ato aberrante do ponto de vista da regra não o era do ponto de vista da teoria analítica, que espera da clínica a sua renovação. Sem o ato aberrante não haveria progresso, o que não invalida as regras psicanalíticas, porém obriga o clínico a com elas estabelecer uma relação dialética.
Só o discurso do analisando legitima a direção da cura. Isso significa que o analista, como aquele, está sujeito ao nachträglich, que nós traduzimos por “só depois”. Sim, a só encontrar depois a razão do seu ato e ter assim que arcar com a pecha de irracional. O que só é possível porque, como aprendeu com a própria análise a não ser imediatista, sabe que o real é racional, embora a racionalidade do real em que ele está implicado momentaneamente lhe escape.
A razão do meu ato — a partir do qual L. não mais bebeu até não poder mais, conforme ela mesma me disse posteriormente —, eu só encontrei quando já bem distanciada. Foi então que o sentido do “Vous avez de la bouteille” apareceu e eu entendi a função do controle. Tal expressão significa “A senhora tem cancha”, porém, eu o ignorava e foi o sentido literal “A senhora tem garrafa” que eu ouvi, o que obviamente só podia me surpreender, me reenviando à minha análise e ao valor do trocadilho, senão do enigma na transmissão da psicanálise.