O amor nos tempos da pandemia
A pandemia
Nós hoje estamos condenados à separação. As fronteiras dos países se fecharam, mais de 5 mil brasileiros não conseguiram ainda voltar e a maioria das pessoas vive confinada. A ordem é ficar em casa. Diante disso, o recurso que nós temos é a expressão do amor através dos diferentes meios de comunicação.
Portanto, vou falar do amor, que é o tema de vários livros meus: O que é o amor, Carta ao filho, A mãe eterna e A trilogia do amor, todos eles editados pela Record, a minha editora há 25 anos, que criou esta plataforma virtual, a Quarentena Literária, para conectar autores, editores, críticos literários e amantes da literatura.
Resumo de A peste
Nos tempos do coronavírus, não é possível deixar de mencionar o grande romance sobre a peste de Albert Camus, publicado no Brasil pela Record.
Na cidade de Oran, Argélia, de repente começam a surgir ratos mortos. Dezenas, centenas deles. O dr. Rieux, um médico, começa a reparar nesse fenômeno dos ratos, até que passa a atender pessoas com sintomas de uma doença que parece terrível. Vão surgindo mais doentes e morrendo muitas pessoas. Por fim, não dá mais para negar as evidências: é a peste bubônica. A cidade é isolada, e é travada uma luta, encabeçada pelo dr. Rieux, para combater a doença. Nesse contexto, há personalidades que desempenham diferentes papéis. Além do médico, temos o prefeito, um padre, um capitalista, um jornalista, um juiz e um voluntário, que ajuda o dr. Rieux. São personagens que correspondem aos que estão em cena na realidade de hoje e que vemos diariamente nos noticiários. O romance incita o leitor a se perguntar que papel ele desempenha ou pode desempenhar nos tempos de peste.
A peste e a separação
Um dos temas de A peste é a separação dos que se amam, e Camus se debruça sobre o drama de Rambert, que faz o possível e o impossível para sair da cidade de Oran e reencontrar sua amada. Rambert sofre, mas não morre. Porém, a separação pode ser um drama tamanho que é impossível, como no caso da mulher do livro Vozes de Tchernóbil, escrito pela ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, Svetlana Aleksiévitch. O marido dessa mulher foi um dos que desativaram o reator de Tchernóbil, depois das explosões, e que morreu por causa da radioatividade. O texto é tão impressionante que eu quero ler para vocês. O médico diz para a esposa sobre o marido moribundo: «Não se aproxime! Você não deve beijá-lo! Não deve acariciá-lo! Ele já não é a pessoa amada, mas um elemento que deve ser desativado…». Svetlana diz que ela nunca deixou de se aproximar do marido, de beijá-lo e não o abandonou até a morte. Por isso, ela pagou com a saúde e com a vida da filha.
O que é o amor
O que é o amor é um livro datado de 1983, ano em que foi publicado pela Brasiliense, provocando uma grande polêmica por causa da crítica que eu fazia ao machismo. A Folha de S. Paulo deu a primeira página da Ilustrada, mas a matéria foi ilustrada com um homem abrindo a braguilha e um livro sendo atravessado por um punhal. O escândalo provocou a venda e mobilizou os intelectuais. Mais páginas foram escritas na imprensa do que as páginas que eu havia escrito. Trinta anos depois, em 2018, a Record reeditou O que é o amor com uma nova introdução e um novo formato, capa do designer Luiz Stein, que fez e fará as capas de todos os meus livros.
Como eu escrevi no texto, o amor é um enigma e não há como fisgar o amor numa ou noutra definição. Ninguém diz isso melhor do que Fernando Pessoa, perguntando: «Anjo (…) de que matéria é feita a tua matéria alada?».
Não há como saber, por que nós amamos uma ou outra pessoa. Isso significa que a escolha do amado é inconsciente. Sempre foi e continua a ser.
Como diz Lacan, o desejo dos amantes é de dois seres fazer UM. Daí o sofrimento que a separação causa e que os amantes procuram superar através de uma forma ou de outra de comunicação. Hoje, pelos meios modernos e, no passado, através da carta – razão pela qual há uma extraordinária literatura epistolar. Como, por exemplo, a correspondência de Simone de Beauvoir com o escritor Nelson Algren, seu amante americano.
Vale se perguntar por que a separação é assim tão penosa? A resposta é simples: o amado é insubstituível. O amor me oferece o único outro que não é inteiramente outro e, portanto, é precioso. A particularidade do amado é tamanha que ele chega a justificar uma vida inteira de espera. Justificou a castidade de Penélope durante toda a errância de Ulisses na Odisseia de Homero..
Agora, é certo que a espera intensifica o amor. A separação pode propiciar aos que se amam um reencontro inesperado, graças aos tantos dizeres do amor que, em tempos normais, nós deixamos de dizer, esquecendo que o amor não vive sem as palavras. Sem o eu te amo, o sem você eu não existo, nós não vivemos.
A propósito do sem você eu não existo, eu escrevi, num dos capítulos do livro: «Na tua ausência, sinto falta, saudade, desejo de te reencontrar. Digo então o mal que a tua ausência me causa: sem você eu não existo. Sendo o meu mal, você é o meu maior bem, insisto em você para não desistir de mim».
Carta ao filho
Anos depois de ter escrito O que é o amor, no meio de um novo turbilhão amoroso, em 2013, eu escrevi Carta ao filho, por causa de um desentendimento entre nós e a ameaça inconcebível da separação.
Escrevi para que ele voltasse, claro, me perguntando que erros eu havia cometido enquanto mãe. Foi uma aventura com a qual eu aprendi muito. A gente tende a tomar a própria mãe como modelo. Isso não funciona. Simplesmente porque não existe modelo de mãe. Para saber como agir, é preciso escutar o filho e aprender com ele. Pouco depois de escrever Carta ao filho, eu entrevistei Elisabeth Badinter, a autora de um livro importantíssimo sobre o amor materno – Um amor conquistado. Badinter me disse, na entrevista, que a mãe perfeita é tão rara quanto um Mozart. Com isso, ela me desculpabilizou e eu concluí que não existe mãe modelo. Além de me questionar enquanto mãe, me questionei sobre o caminho que eu desejava seguir, independentemente das relações familiares.
Trata-se do meu livro mais autobiográfico, escrito para superar uma separação momentânea e uma outra que se anunciava por eu ter um filho adulto.
A propósito disso, escrevi o seguinte no livro: «A mãe só pode se separar e liberar o filho abrindo mão da fantasia de que ele é um bebê e aceitando que ele é um adulto. Drummond diz que, para a mãe, o filho é sempre um grão de bico. Porém, cabe a ela se livrar dessa fantasia. Ser mãe também é a arte de se separar na hora certa».
O amor é um sentimento paradoxal. Quem ama não quer se separar. Mas a maior prova de amor que nós podemos dar é aceitar a liberdade do outro. Por isso, Octavio Paz diz que o amor é uma aposta na liberdade. Diz isso num livro maravilhoso, o último que ele escreveu na vida, chamado A dupla chama. Sobre ele, eu tive o privilégio de entrevistar Octavio Paz para a Folha de S. Paulo. A entrevista pode ser lida no livro A força da palavra, também editado pela Record, ou no meu site.
A mãe eterna
Em 2016, outro texto que tem a ver com o amor se impôs: A mãe eterna. Trata-se da história da relação tão enlouquecedora quanto profunda que se estabelece entre uma mãe e uma filha até a morte daquela. O romance começa com a filha escrevendo para a mãe quase centenária. A filha se pergunta como suportar a morte dos seres amados. Como enfrentar a velhice extrema? Cabe ou não ao médico manter o doente indefinidamente vivo? Como humanizar o fim da vida?
E ela começa escrevendo para a mãe centenária o seguinte: «Se eu pudesse te dar de novo a vida… fazer você nascer de mimk como eu nasci de você… Não paro de desejar o impossível. Apesar dos seus 98 anos, não suporto te perder. Eu, que sei do fim de tudo, não me conformo com o seu fim. De que adiantou ler os budistas e saber que tudo muda, ‘as causas e as condições variam continuamente’? Que a vida é ‘fluxo de criação, transformação, extinção e nada permanece’? Sei que só a impermanência possibilita a renovação do universo, porém o coração não acompanha a cabeça».
A mãe eterna é um texto inspirado na vida real, sem ser autobiográfico. No romance, a mãe morre, enquanto, na vida real, ela está viva. Hoje com 102 anos. Com este livro, eu me dei conta do quão cruel o prolongamento artificial da vida pode ser, mas também do muito que é possível aprender com a velhice extrema.
A trilogia do amor
Last but not least, gostaria de falar sobre um livro que eu levei mais de duas décadas para escrever e que se compõe de três textos: O sexophuro de 1981, A paixão de Lia de 1995 e O amante brasileiro de 2003.
O sexophuro diz respeito ao drama de um casamento impossível sobre o qual a narradora fala da seguinte forma: «Casou-se para se atirar da janela meses a fio, maldizer a casa onde ele broxava e ela vivia obrigada a um cotidiano deixar-por-menos, deixar-se adiar». Mas O sexophuro também diz respeito à recusa do casamento como a única saída para a mulher. Não se pode esquecer que ele data dos anos oitenta, quando os novos costumes da revolução sexual ainda não tinham se enraizado no Brasil.
A paixão de Lia é uma prosa poética. Diz respeito a uma mulher que, para compensar a falta do amado, se deixa levar pela fantasia. Passa de uma a outra situação imaginária e se realiza através da liberdade de imaginar. A cada situação corresponde um voto da personagem. O primeiro é o de encontrar um amante, o ideal. O segundo é o de encontrar num bordel os simulacros do amante ideal. O terceiro é o de ser uma cortesã. O quarto, de ser lésbica, e o quinto, de ser mãe. São cinco votos em cinco capítulos: «My man», «O bordel», «A cortesã», «A Ilha de Lesbos» e «Ave, Maria! ».
O monólogo erótico da personagem é uma viagem em que tanto ouvimos a voz de Lia quanto as vozes femininas pelas quais ela se deixa embalar – Billie Holiday, Edith Piaf. O leitor viaja ouvindo e se transportando para os lugares com os quais Lia sonha: Paris, Buenos Aires, Nova York…
Me permito ler um fragmento de A paixão de Lia, em que Lia está às voltas com Billie Holiday:
«Billie, para que eu possa ser mais impudente,
Lady Day
a voz de Lady para mais excitar o meu corpo sem voz
a Dama que cantando de tudo se lembra:
de si little nigger, negrinha, e do silêncio do estupro aos dez
do telefone trin, aos dezoito, para a twenty dollar’s call girl,
putinha
da ordem de só entrar pela porta de serviço
do grunhido dos porcos que ela, internada
no reformatório de drogados, guardava
das botas da polícia no quarto do hospital
e do tilintar das algemas nos seus punhos
de mulher agonizante, adeus, farewell
Que, ao som dela, My man, ele me abrindo o caminho do meio se esqueça de si, eu levitando me perca e, segredando o nome do amado, ouça a voz que tenho.»
Neste texto, a heroína faz pouco da obrigação do gozo e diz que, mesmo no bordel, só o prazer deveria ser requerido. O que lhe interessa é o sexo sonhado e, por isso, evocando Fernando Pessoa, diz na introdução que «nessa terra é tão preciso sonhar quanto navegar».
O amante brasileiro é o terceiro livro dessa trilogia, em que a mulher encontra um verdadeiro parceiro. O romance é centrado em dois personagens, Clara e Sébastien, que acima de tudo querem o acordo. A comunhão, que a personagem de O sexophuro sequer imagina e Lia só alcança imaginariamente, é vivida de maneira plena e na realidade por Clara e Sébastien, que são irmãos de alma.
Os três livros nasceram em circunstâncias muito diferentes. O primeiro, por ocasião de uma separação e pela certeza de que o casamento não podia ser a única solução para a mulher. O segundo, por ocasião da tradução de um romance meu, O papagaio e o doutor, para o francês e a necessidade de escrever em português para escapar ao espartilho da língua francesa. E O amante brasileiro quando eu encontrei o homem que me inspirou uma grande paixão e com o qual eu vivo até hoje. Os personagens de O amante brasileiro estão separados e suportam a separação através de uma troca de e-mails.
Para terminar, eu gostaria de ler um e-mail de Clara, que está no Rio de Janeiro, e outro de Sébastien, que se encontra em Paris.
«Clara para Sébastien
o calor da tua presença me aquece mais do que o sol do Rio de Janeiro
pudesse eu ser transferida logo
ir para onde você está
ser de novo a correspondente do jornal em Paris
isso já é certo
o que eu ainda não sei é a data
até lá, eu escrevo para vencer a distância e neutralizar o tempo que passa
para que você não me esqueça
as palavras todas para desacreditar o oceano
para impedir o esquecimento
as palavras todas, meu amor…
Sebastien para Clara
também eu sonho, dia e noite, com o incêndio de que você é a causa
tua mão como cobra no meu corpo
o meu dedo que te escava
fervorosamente
o teu sonho é o meu
de nada eu me esqueço
no elevador, eu te ouvi e me tornei o que eu já era : um brasileiro
deixei que você me batizasse nas águas do teu país, para que
você renascesse nas minhas, tivesse a nacionalidade do nosso amor
o que eu mais queria era me tornar mestiço
renascer assim
comparar o meu sexo ao sol
só a certeza de que eu posso me perder em você hoje me aquece.»
O amante brasileiro, que se encontra em A trilogia do amor, pode inspirar os que hoje estão separados, mas haverão de se reencontrar, porque a pandemia passa como a gripe espanhola passou.
Não posso terminar sem dizer algumas palavras sobre o coronavírus, que, além de ensinar a contenção, através do confinamento obrigatório e mais do que necessário, pode ensinar outras coisas. Entre elas, que nós entramos em pânico porque o vírus nos impede de negar a morte, obriga a saber dela e nos desestabiliza. Podia, ao contrário, servir para nos ensinar a refletir sobre a morte e planejá-la. Sobre isso, vou escrever no meu próximo livro, cujo título é Heresia. Sobre o vírus do medo, vocês poderão ler em breve um artigo meu na Folha de S. Paulo.
Boa sorte para todos nós e até.
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Conferência escrita para a Quarenta Literária da Editora Record
São Paulo, 7 de abril de 2020.