O amor do mestre

O amor do mestre

Lançamento do Caderno Freudiano Lacaniano nº 2, 1979

 

A revista que lançamos hoje se chama Freud e Lacan. Trata-se do amor entre dois mestres na história da Psicanalise.

Daí o nosso tema: a história e o amor do mestre.

Dizer de alguém que ele é um mestre, é dizer dele que não é o gozo que o preocupa, mas o seu desejo que ele não negligencia. Assim, o mestre é aquele que não teme o vizinho, não se subordina necessariamente às convenções. Se Freud foi um mestre, ele o foi por ter valorizado o menor evento da vida cotidiana: um sono mal dormido, uma palavra esquecida ou uma simples mancada, isto é, por ter remetido cada sujeito àquilo que nele é incomparável.

Quanto a Lacan, ele foi um mestre por ter retornado para avançar, ter relido para inovar, indicando por esta via o sentido preciso da palavra interpretar. Lacan apenas pontua o texto originário, acionado pelo desejo de reencontrar o discurso de Freud, de quem ele certamente ouviu: “Tu és aquele que me seguirá”, e a quem ele respondeu: “Tu és o meu mestre”.

Entre um mestre e outro, a história da Psicanálise através de um retorno, o passado originário da teoria retomado no presente, senão reconstruído, como o analisando torna presente o evento passado para fazer de um discurso arcaico um discurso atual, a narração viva de uma epopeia, ser o ator a quem o analista responde da posição do coro, para daí reenviar ao analisando a sua própria mensagem, e, como ele, se tornar o espectador do que se passa entre o inconsciente e o Outro.

Lacan rememora Freud, faz a teoria ressurgir como um destino em marcha, não a fisga num determinado sentido e não cessa de afirmar que a palavra do passado é dada pela palavra presente, palavra que, sendo plena, reorganiza as contingências passadas, dando um sentido às necessidades por vir e, assim, demonstra que o evento originário só nos é revelado depois, só depois, nachträglich, segundo Freud.

Entre Freud e Lacan, uma história de amor, amor que, não sendo simultâneo, é sempre recíproco, se faz através do dom, no caso, daquilo que nenhum dos dois tinha e tirou de si para transmitir, enviar além. Como o desejo nos envia de um significante ao outro e, de falha em falha, vai produzindo a verdade do sujeito, que só se revela através da mentira, cujas pernas, o provérbio já dizia, “são demasiado curtas”, enquanto Lacan insistia: “Verdade alguma pode ser toda, a verdade toda do que foi, é ou será, nunca, em tempo algum, ela se dirá”.

Talvez por isso Freud nos diga que a controvérsia teórica é infrutífera. Ele, que não era lacaniano, mas inegavelmente se ocupava da verdade.

Precedida pelo Dr. Durval Marcondes, membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, pelo Dr. Isaías Melsohn, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, e pelo Dr. Fábio Hermann, também associado à mesma instituição, a minha fala é ocasionada pelo lançamento do Caderno Freud Lacaniano nº 2, pelo lançamento de uma nova Escola: a Escola Freudiana de São Paulo.

Assim, queira ou não, é a questão do lugar que se impõe à minha fala, cujo lugar de enunciação é o daquele que, tendo se reconhecido no ensinamento de Lacan, reconheceu-o como mestre, à diferença dos que dele se separaram, primeiramente em 1953, através do que se cognominam Cisão, e 10 anos mais tarde, em 1963, através do que, segundo o próprio Lacan, teria sido uma Excomunhão.

Cisão – do que é que nela se trata? Cisão na Sociedade Psicanalítica de Paris, onde, em 1949, o grupo liderado por Sacha Nacht, então presidente da Sociedade, e apoiado por Maria Bonaparte, Sérgio Lebovici e a própria Anna Freud, apresenta um programa de cursos e um projeto de estatutos assegurando-lhes maioria absoluta tanto no Instituto como na Comissão de Ensino. A ambição do programa e do projeto era de que o diploma de psicanalista fosse só para médicos. Segue-se uma série de fatos que em 1953 precipita uma cisão.

O grupo de psicanalistas e estudantes encabeçados por Daniel Lagache e Jacques Lacan se separa e funda a Sociedade Francesa de Psicanálise, que imediatamente solicita reconhecimento e afiliação à Associação Internacional de Psicanálise. Esta envia a Paris uma comissão presidida por Winnicott para investigar as atividades da Sociedade Francesa de Psicanálise, cuja demanda será recusada – nota imediatamente publicada pela Sociedade Psicanalítica de Paris, acrescentando o comentário de que a Cisão é devida aos desvios técnicos dos demissionários, particularmente de um deles, Jacques Lacan.

Dez anos mais tarde, a Sociedade Francesa de Psicanálise é reconhecida pela Internacional de Psicanálise depois de uma negociação que consistiu em trocar o reconhecimento pela exclusão de Lacan da Comissão de Ensino, fato que este comenta no Seminário XI, no capítulo intitulado Excomunhão(1):

 

“O meu ensino (…) sofreu, da parte de um organismo que se chama Comitê Executivo, de uma organização internacional da chamada Associação Internacional de Psicanálise, uma censura que não é habitual, pois se trata aí de proscrever este ensino… e de fazer desta proscriação a condição da afiliação internacional da sociedade psicanalítica à qual eu pertenço.

“(…) afiliação que não será aceita, a menos que se deem garantias de que o meu ensino não possa, através desta sociedade, entrar em atividade para a formação de analistas.

“Trata-se aí de algo comparável ao que se chama em outros lugares excomunhão maior. Embora esta, nos lugares em que a expressão é empregada, não seja nunca pronunciada sem a possibilidade de retorno. Sob esta forma, ela só existe numa comunidade religiosa (…) a sinagoga, e foi propriamente disto que Espinoza foi objeto (…)”

 

Espinoza 1656, Lacan 1963. Excomunhão: uma história cujos efeitos se fizeram sentir na França pela fundação da Escola Freudiana de Paris, em 1964, e nos outros países pela quase total ignorância do discurso lacaniano até bem recentemente; o ensino da Psicanálise aí se restringindo ao das Sociedades de Psicanálise afiliadas à Associação Internacional de Psicanálise.

Tendo em vista a Cisão e a Excomunhão, eu me vejo na contingência de perguntar o que teria levado os membros desta mesa a convergir num mesmo lugar. Teria sido a ideia de que a história a que me referi não nos concerne senão remotamente? Ou a ideia de que ela revela antes uma oposição de poderes, irrelevante para a cura e a transmissão do saber psicanalítico?

Seja como for, o que funda o ensino lacaniano e dá sentido ao seu retorno a Freud é a crítica sistemática que Lacan fez aos desvios impingidos à descoberta freudiana, desvios que chegaram mesmo a levar o Instituto de Psicanálise da Sociedade de Paris, em 1952, a propor como exergo do mesmo Instituto uma citação que fazia da Psicanálise um ramo da Neurobiologia, como se a Psicanálise não fosse função e campo da palavra e tivesse, afora a palavra, algum outro meio de operar, seja na cura, seja na formação ou na investigação.

Tendo sido considerada um ramo da Neurobiologia, a Psicanálise se quis ainda uma espécie de Fenomenologia, esquecida de que o seu objeto não é a intencionalidade da consciência, mas o que falha no discurso do sujeito e dele faz o sujeito barrado do inconsciente, daquilo que, determinando o sujeito, escapa à intencionalidade da consciência, se manifesta no sintoma e se revela através do discurso. Ou seja, o sujeito que pensa e que se diz à revelia da consciência.

Neurobiologia, Fenomenologia… a Psicanálise nos Estados Unidos trilharia outro descaminho, concentrando-se na instância do ego para moldar o sujeito, transformando-se numa forma de exercício de poder, numa prática de human engineering, alvo principal da crítica que aciona o ensino lacaniano, cujo propósito é o de reencontrar o sentido da obra freudiana e indica de forma clara as posições teórico-práticas às quais ele fará oposição.

Assim, ensinando, Lacan indica o risco do ecletismo, hoje já transformado em perigo nas tentativas vigentes até mesmo nas Sociedades de Psicanálise, de assimilar certas das teses lacanianas, negligenciando as que não se prestam a isso. É o caso, por exemplo, da assimilação da teoria lacaniana do imaginário destacada da topologia através da qual Lacan procura dar conta do sujeito, qual seja, a do RSI, do Real, do Simbólico e do Imaginário, topologia em que o Real é aquilo que falta ao seu lugar, senão o que se repete, e onde o Imaginário só encontra o seu sentido através do Simbólico.

Falar das perspectivas do movimento lacaniano, tema que me foi proposto, significa, fazer a prevenção do ecletismo, mas significa ainda evocar que, no retorno a Freud, Lacan fez uso de vários dos saberes contemporâneos, Linguística, Topologia, Antropologia, para questioná-los a partir do campo freudiano, dar-lhes um sentido outro e, através deles, criticar e pontuar devidamente o discurso psicanalítico originário.

Assim, eu diria que o movimento lacaniano deve, para encontrar as suas perspectivas, seguir a trilha antropofágica do mestre Lacan, servindo-se do seu inesgotável legado, o dom do que ele não tinha e tirou de si para transmitir, quer dizer, enviar além, como o desejo nos envia de um significante ao outro, para, de falha em falha, produzir a verdade do sujeito, verdade que se diz através da mentira e não tem como se dizer toda.

 

________

Lançamento do Cadernos Freudianos Lacanianos 2, Escola Freudiana de São Paulo, 1979.

(1) Lacan, Jacques. Le Séminaire de Jacques Lacan. Livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Éditlons du SeuiI, 1973.