Núcleo Moreno
São Paulo, 1982
Beacon, New York, às margens do Rio Hudson. De que forma retomar hoje uma experiência que é datada de 12 anos atrás? O que nela pode me interessar? Quais os seus limites?
Para responder a isso, retrocedo e me coloco no cenário da dita experiência – Formação Psicodramática em Beacon.
Um teatro, um método terapêutico, uma ação dramática. Não fosse a expressão “método terapêutico”, eu poderia dizer que a experiência era lacaniana. A expressão, entretanto, é um divisor de águas: ele separa Moreno e Lacan(1). Por quê? Pelo que a terapia visa, isto é, reconduzir de volta o sujeito a seu modo de estar anterior a uma doença.
Ora, ninguém pode passar por uma psicanálise e voltar atrás, a menos que não seja uma Psicanálise. Aliás, o termo psicoterapia, de origem grega, é justamente o termo que o cristianismo grego usa para nomear a conversão dos infiéis. Nada a ver com a Psicanálise, que não converte infiéis, não se propõe a fazê-lo nem teria mesmo como. Sendo uma cura, a Psicanálise não é uma terapia. O analista, contrariamente ao psicoterapeuta, não é um diretor de consciências, isto é, ele não opera nunca através da sugestão.
Mas o que é a cura? A cura no sentido lacaniano? A cura é uma experiência na qual o analisando torna presente o evento passado, faz de um discurso arcaico um discurso atual, isto é, faz de um discurso arcaico a narrativa viva de uma epopeia, para se tornar o ator a quem o analista responde da posição do coro, isto é, reenviando ao analisando a sua própria mensagem e, como ele, se tornando o espectador do que se passa.
Ou seja, a cura supõe uma epopeia, um ator (o analisando), um coro (o analista) e os espectadores (analista e analisando). Trata-se, portanto, de um teatro – daí a expressão “artifício freudiano” para designar a situação analítica —, um teatro em que o analisando é simultaneamente o ator e o espectador do seu próprio drama, e o analista, apenas o coro.
Se eu retomei a noção de cura para falar de Moreno e Lacan, foi precisamente pela teatralidade que marca as duas posições, que certa vez me fez dizer ao Dr. Lacan que ele era o mais psicodramático dos analistas.
Para ilustrar isso, eu recorro à memória e leio aqui certas anotações sobre o que ocorria na minha própria análise.
“Primeira anotação: teatralidade do doutor (que está no ato de funcionar como o coro).
Segunda anotação: teatralidade a que, através do corte, ele me obrigava.
Última anotação: o que evidencia a teatralidade da cura analítica é o fato de que ela reenvia a uma epopeia. Abrir o balanço sobre Milan era me expor à minha história, esta epopeia da qual eu me tornaria, na análise, a atriz.”
Isto posto, eu gostaria de dizer que foi para responder à questão de saber “quem sou eu” que a experiência moreniana me interessou, que ela ainda me interessa, na medida em que nela a cura se concebeu como um teatro, e que eu abandonei porque ele era acionado por um dever ser, um imperativo categórico, um juízo moral que me impedia de saber quem eu sou.
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São Paulo, 1982
(1) Referência a Jacob Levy Moreno (1889-1974), criador do psicodrama e pioneiro no estudo da terapia em grupo, e ao psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981).