No limiar de literatura e psicanálise
Academia Paulista de Letras, 2015
Os acontecimentos de ontem em Paris(1) me obrigam a dizer uma palavra sobre a França e os franceses, porque sou tão francesa quanto brasileira.
Cheguei em casa com o meu companheiro francês. Lá, meu filho, que também é francês, abriu a porta perguntando se nós já sabíamos. “Há muitos mortos e feridos em Paris. Foi um ataque terrorista. Vários pontos da cidade, a polícia está prestes a entrar no Bataclan, onde há mais de mil pessoas que foram a um concerto de rock. Vai ser um massacre. Nenhum amigo nosso está lá, mas…”
Foi a pior notícia que eu já recebi, e chorei o maior dos meus choros. Entrei no quarto e fiquei diante das imagens de televisão, em posição fetal. Não podia parar de chorar. Meu menino me dava beijinhos. O companheiro sugeria que eu tomasse um remédio. Não quis saber dos beijinhos e nem do remédio. Queria chorar. E só hoje de manhã eu entendi o porquê do meu choro.
Ser francês significa morrer pela causa da liberdade se preciso for, e ser mãe de um francês significa correr o risco de perder um filho nessa luta, ver um neto pagar com a própria vida para perpetuar os valores da République, que são os valores da humanidade. O resto é barbárie, e não é possível ceder diante dela, ainda que seja preciso declarar estado de urgência e entrar em guerra.
Não teremos mais a liberdade de andar na rua em Paris, mas os franceses se unirão e o mundo se unirá em torno deles contra o Mal, contra a paixão do ódio, que precisa ser vencida na França e onde quer que ela se manifeste ameaçando a vida.
A paixão do ódio é indissociável da paixão da ignorância, que perpetua o subdesenvolvimento e a violência de que nós também somos vítimas. Quero lembrar que o índice de homicídios, no Brasil, é o maior do mundo. Foi para reagir contra isso que eu escrevi Consolação, um romance sobre o Mal – que se passa em São Paulo – e sobre o qual eu vou falar aqui.
Para tanto, preciso fazer um pequeno desvio. Segundo Kafka, a literatura alcança a sua potência máxima quando evidencia as ficções poderosas que nos governam. E o que é uma ficção poderosa para ele? Um discurso que o tempo converte numa verdade indiscutível.
Ao ler este texto, eu me perguntei o que significa evidenciar as ficções poderosas. A resposta me veio através de diferentes imagens – do Quixote se debatendo com os moinhos de vento, do Quixote reverenciando Dulcineia del Toboso, do Sancho Pança sonhando com o governo de uma ilha.
Tendo relido o texto do Kafka, pensei no meu romance Consolação e ouso dizer que o tempo converteu este texto, que diz respeito ao luto e à cidade de São Paulo, num texto que não é datado. O jornalista Manuel da Costa Pinto, que é colunista literário da Folha de S. Paulo, escreveu uma crítica sobre o livro em 2009, quando ele foi publicado, e esses dias tive o prazer de reler.
Manuel entendeu que o romance Consolação revelava as ficções que governam as nossas vidas nesta nossa cidade de São Paulo impossível, além de vertiginosa(2).
“O trajeto entre o aeroporto e o Centro da cidade é uma via crucis na qual notícias sobre o câncer da criminalidade, da degradação dos laços e dos escândalos políticos apresentam o Brasil como ‘metástase infernal’.
E o passeio de Laura pelas vielas da necrópole paulistana faz parte, mais uma vez, do jogo de oposições e complementaridades do romance.
(…)
A escritora e psicanalista Betty Milan, que vive entre São Paulo e Paris, usa sua cidade natal para descrever um trabalho de luto, mas também faz do luto uma forma de fazer a catarse – no sentido freudiano de “purgação” – de uma morbidade social.”
Com efeito, para escrever o romance, eu primeiro atravessei o inferno das ruas da cidade, ouvindo os mendigos, os catadores de papel e os loucos. Era preciso que eu perambulasse, a fim de escrever e me separar da realidade onde vivo. Desde sempre, moro a 50 metros da avenida Paulista, onde vejo cenas de terror e desfalecidos com caras de anjo.
Voltando ao romance, pouco depois de chegar a São Paulo, a narradora Laura vai ao cemitério. Paradoxalmente, ela encontra consolo graças ao encontro com os mortos e ao diálogo com eles. Em particular, com os escritores Mário e Oswald de Andrade, os meus ancestrais literários, e com o pai dela, que a induz a escutar os que nunca são escutados. Laura aceita o conselho e sai em busca da sua salvação através da escuta.
Não seria preciso dizer mais para afirmar que Consolação é um romance escrito por alguém que se nutre da experiência analítica e confia nela. Noutras palavras, trata-se de um romance que pulsa no limiar da Literatura e da Psicanálise, o limiar no qual eu me equilibro e fico bem.
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Academia Paulista de Letras, São Paulo (SP), 14 de novembro de 2015.
(1) Referência à série de ataques terroristas ocorridos em Paris e Saint-Denis na noite de 13 de novembro de 2015.
(2) Pinto, Manuel da Costa. Trabalho de luto. Folha de S. Paulo, Rodapé Literário, 22 de agosto de 2009.