leitura dramática
MONÓLOGO DO MARIDO
— Perder não significa não ter, Laura. A menos que você tenha se esquecido de nós. O amor verdadeiro é eterno. A morte separa os cônjuges, os amantes, ela não separa. Lembra do primeiro encontro? Quatorze de julho… Ilha São Luís. Você me disse que era turista e eu respondi: “— Não, Laura, você é daqui. Ubi bene, ubi patria. Comigo você está bem. Saímos pela cidade. Mãos dadas e a certeza de que nada podia nos separar. Ainda que nem você e nem eu soubesse por quê. O seu desejo era o meu, embora eu falasse uma língua e você outra. Quando o bateau-mouche passou, você disse: “— Uma centopeia iluminada”. Não entendi, mas soube que precisava aprender a tua língua para te dar a minha. Aprender você de alto a baixo para que a nossa nacionalidade fosse a do nosso amor. No Châtelet, diante da Vitória, você me surpreendeu com: “— Uma cigana”. A palavra em francês é tzigane. Ouvi cigana e gostei. Olhei a Vitória e tive a impressão de que ela ia dançar. Na Pont Neuf, o primeiro beijo. Quero mais. Você aproxima o corpo. O meu sexo lateja no teu ventre. Toma, é seu. Já nos entregamos um ao outro. “— Vem.” E nós nos sentamos numa das conversadeiras. Ouso acariciar o teu seio. Quero mais. “— Vem, Paris não acaba nunca”. Descemos para o cais. “— Vem”, e eu te levo olhar as máscaras da ponte — o espanto, o medo, o desgosto, o deboche, a alegria. Você se encosta na parede e eu em você. Fecho os olhos e te beijo e enrolo os teus mamilos na ponta dos meus dedos. Até ejacular. “— Vê o que você faz comigo, Laura?” Você ri e nós caminhamos, ouvindo os nossos passos nas pedras seculares e os passos de outros amantes. “— Vamos para casa? — Vamos?” Sorvi a tua garapa e te dei o meu mel. A partir de então, você passou a ser uma brasileira de Paris, e eu passei a ver a cidade com os teus olhos de estrangeira. O oceano que separava os nossos países não era um empecilho. Não era um país que nós queríamos, eram as paisagens todas que pudéssemos ver juntos, as cores do desejo e o cheiro do prazer. O sim era a palavra que você e eu mais dizíamos. Sendo único, cada um de nós era mais de um, sabia se transfigurar. O nosso amor não era impossível como o de Tristão e Isolda. Nós rolamos à luz do sol e à luz das estrelas. Reencarnamos outros amantes, inclusive os que não puderam rolar. Vingamos Heloísa e Abelardo. Celebramos continuamente a transgressão. Você me falou de Bocage e ele se tornou o meu poeta preferido. Só não lemos o Kamasutra por estarmos certos de que ele nada nos ensinaria. Cada um de nós era o guardião da liberdade do outro. Por isso nós nos casamos. Você de smoking prateado. Festa de casamento no Train Bleu. Embarcamos para Cracóvia, rindo de quem vai para Veneza. Queríamos outro romantismo, extremado. Pouco nos importava que a Polônia estivesse em pé de guerra e o cardápio dos restaurantes fosse uma promessa de pratos em falta. Nós nos bastávamos com o que víamos e ouvíamos… as histórias de heróis capazes de enfrentar um tanque de guerra com um coquetel molotov. Lembra? A tua presença me brindava com a orquídea mais rara ou com a flor do campo. Nossas águas se encontraram até que nascesse Alex, um anjo que eu mesmo batizei. Lembra? “— O amor que sabe do humor é o que eu, filho, mais te desejo. Quero que você ame e seja loucamente amado por alguém em cuja presença você possa dizer Estando, me faltas. Com o nascimento dele, você e eu fomos rebatizados: mãe e pai. Viver para Alex foi viver para nós mesmos. Sua felicidade foi extrema. Um pequeno outro que também era você. Nascido para o mel que gotejava do teu seio e para o verbo… Você nomeou os seres da terra e os do céu. Depois, também sobre a morte você falou. Disse que nós todos um dia viramos estrela e entramos numa constelação. Eu virei estrela, Laura. A morte foi uma amiga… ela me libertou. Você se esqueceu do hospital? Da minha agonia? A desaparição do meu corpo não é a minha desaparição. A morte não anula a minha existência e não anula o que você e eu vivemos. O nosso casamento, como tudo, estava fadado a acabar. Por que se desesperar? Quem ignora o efêmero da vida, não se dá conta da preciosidade da existência. O que conta é isso e o fruto do nosso amor. Além de viúva, você é mãe. Sai da rua, Laura. O dono dela é o Filho do Cão.
MONÓLOGO DA MÃE
— O que importa não é a duração da vida… é o que a pessoa faz. Tem quem dura e não vive nada. O tempo de vida depende da sorte. Viver bem depende de cada um de nós. Vive cada dia como se fosse o último? Vive bem. Ninguém está aqui para ficar. Veja, quase todos já se foram… o seu pai, meus irmãos, meus amigos. Quando o seu pai morreu, chorei um dia e uma noite. Depois, parei. Todo dia me lembrava de um lugar em que estivemos e nunca mais estaríamos. Foi assim durante um ano inteiro. Até que, de repente, ele voltou e ficou. O destino tira o que a gente tem. O que a gente já perdeu, ele não tira. Carpideira eu não suporto. Quando o seu avô morreu, contrataram umas velhas de preto, que choravam e contavam a história do morto. “— Veio do Líbano, construiu o palacete, deixou a esposa …” Tudo em árabe. Até o bispo da igreja greco-ortodoxa estava. Que teatro funesto! Chorar, sim; soluçar, não. Interessa mostrar a dor? E para o choro tem um tempo. Lamentar a infelicidade atrai a infelicidade.
A gente se acostuma com tudo. Eu então não perdi um irmão de vinte e seis anos? Moço, médico, amigo do seu pai. Morreu de nefrite. Cuidei o tempo todo. O seu pai sabia que ele ia morrer. No dia, estava ao meu lado. Quando me dei conta de que a morte significava nunca mais, perdi o rumo. Perambulava dia e noite sem comer. Sonhava com ele no caixão e acordava aterrorizada, maldizendo o sonho e a memória, querendo me atirar no chão como um bicho… rolar até perder os sentidos. Queria morrer. Hoje, eu sei que o tempo tudo sana. Mas, na época, eu não sabia. Não fosse o seu pai… Só não morri graças a ele… ao sopro de vida. “— A hora do seu irmão chegou… precisava parar de sofrer. Morreu, mas ninguém esquece dele… continua vivo de outra maneira. Renasceu na memória. Quem chora, como você, cava para o morto uma segunda sepultura. Calamidade é não se conformar… Você enterrou o seu irmão. Vai enterrar a irmandade? Deixa de chorar e lembra da sua vida com ele.”
Quem vive precisa de consolo. A morte está continuamente à espreita. A gente sabe que ela pode chegar. Quando chega, ninguém acredita… Imprevisível sempre. A morte. E a vida também.
Esperei dez anos para me casar. Queria tanto um filho! Engravidei e a criança se enforcou no cordão. O médico auscultava e não ouvia nada. Passou a mão na minha cabeça. Depois, só mandou esperar “até ela sair naturalmente”. Não ia nascer, ia sair. Sofri as contrações e não dei a vida, expeli o morto. Foi enterrado numa caixinha. Só me conformei quando você nasceu.
Padeci, mas agora são águas passadas. Só o que o seu pai me disse e me escreveu conta… as cartas que ele me enviou do Rio de Janeiro. Ficou seis anos lá… Na ausência, o tempo custa a passar, e quem escreve suspende o tempo. Recebia três cartas dele por mês. Era como se o mês tivesse só três dias. A missiva mal chegava, eu já estava lendo. As cartas são o meu único tesouro. Deixei de acreditar em Deus quando seu pai morreu. Achei que a injustiça foi grande demais. Se Deus existisse, teria me levado junto. O nosso amor era o dos que não precisam se ver todos os dias. Durante anos, nós pouco nos encontrávamos, mas as recordações… Amor, háquem pense que a palavra não tem significação. Sempre que eu pronuncio, é como se fosse a primeira vez… a palavra vem do âmago. Sempre que eu escuto, é a mesma coisa, bate fundo. O seu pai e eu agora estamos juntos. Não tem mais risco de separação. O tempo é todo nosso. Ficamos livres do relógio desde que ele entrou para a eternidade. Mais nada nos ameaça, e as lembranças são tantas que eu nunca me aborreço. Acho até bom escutar e enxergar menos. Me dedico mais a nós dois. Bendigo hoje cada um dos dias da semana, inclusive aquele em que o carteiro não passa. As cartas já estão todas comigo.