MOISÉS LIPORAGE *
Uma mulher está em busca de si mesma, deitada num divã. Ela trava o seu diálogo (monólogo?) com o psicanalista tentando desesperadamente colar os caquinhos de sua personalidade multifacetada. O difícil movimento de moldar a própria imagem diante de um estranho confidente, que é ao mesmo tempo amigo e inimigo, irmão e objeto de desejo, pode ser visto como uma arte. A arte de desnudar-se num complicado jogo de revelar ocultando.
Seriema é a paciente em questão, uma “analisanda”. Natural de Açu, um país imaginário da América, Seriema convive com uma grande variedade de sentimentos contraditórios, resultantes de sua condição singular: ela é doutora, erudita, uma mulher fina e educada que nasceu em uma terra de iletrados, ignorantes. Descendente de imigrantes libaneses, sente-se “um ser inviável” em seu próprio país. Vai à França procurar o autoconhecimento e analisar sua situação em perspectiva. Vivendo no Primeiro Mundo, Seriema não consegue se desvencilhar de seus cacoetes do Terceiro, e sua consciência é varada por dogmas e fetiches, vagando entre o Candomblé e a Psicanálise.
A princípio disposta a ultrapassar as barreiras da língua, ela se deita num divã em Paris para evocar o passado, encontrar suas raízes e ironicamente descobrir que a incomunicabilidade transcende os idiomas, instalando-se no interior de uma mesma cultura, de uma mesma psiqué, obstruindo diálogos e monólogos. O enigma de sua feminilidade é dissecado por Xan, o psicanalista; um pai, um avô, um possível amante.
O Papagaio e o Doutor é o mais recente livro da psicanalista Betty Milan. Formada na França por Jacques Lacan, é autora de vários ensaios, incluindo O que é Amor, e já colaborou em jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Nessa sua incursão pela ficção supostamente autobiográfica, ela desenvolve o projeto que vinha esboçando desde O Sexophuro, uma “novela-novelo” que flagrava outra mulher em busca de sua identidade. O Papagaio e o Doutor questiona a própria Psicanálise e suas tendências aos rótulos e catalogações, embora reconheça nela uma tentativa de se vislumbrar a verdade.
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* “O terceiro mundo analisado no divã”, artigo publicado no jornal O Globo, a 20.10.1991, por Moisés Liporage, jornalista e escritor.