Mito na marca do pênalti
Sônia Biondo (1)
O mito de que o futebol é coisa de macho tem seus dias contados. A psicanalista e escritora Betty Milan, acostumada desde criança a ver a bola como objeto exclusivo do homem e torcedora só em Copa do Mundo, aceitou o desafio da Biblioteca Eucatex de Cultura Brasileira e decidiu expulsar de campo uma das mais caras tradições da masculinidade nesta pátria de chuteiras: a de que só homens podem entender e escrever sobre futebol. O resultado está em Brasil, o país da bola, um livro ilustrado em edição caprichada da Best Editora, com que a Eucatex pretende brindar o Natal de seus clientes especiais.
Desde o advento de Rosenery, a fogueteira, os estádios descobriram que já não eram indevassáveis ao temperamento feminino. Brasil, o país da bola é a primeira prova escrita disso. Dividido em sete capítulos bem-humorados, todos recheados com belas fotos de jogadas dançantes, o livro de Betty Milan, concebido na casa de amigos em Villedieu-la-Blouère, sob a calma do Maine e do Loire, na França, começa destruindo o mito de que o futebol seria o ópio do povo – mito lançado pela oposição à ditadura militar, durante o governo Médici. A autora inverte esta concepção ao apresentar o futebol como modelo educacional, para que o Brasil, brincando, seja efetivamente sério.
Pode ser. Mas não é só por aí que a polêmica promete lances emocionantes. Logo no início, no primeiro capítulo – “Às portas da cidade” –, Betty Milan justifica a sua ausência no futebol por um tabu sexista, que sempre classificou o jogo como coisa de homem. E vai mais fundo no segundo capítulo, “Futebol esperança”, quando a maneira de jogar bola aparece como expressão das diferenças culturais entre cada país que pratica o esporte. “O estilo do brasileiro é o da brincadeira, da sátira imortalizada por Garrincha”, diz um trecho. Não é só. No terceiro capítulo, “A Copa perdida”, a autora revela o momento original do futebol brasileiro – a tragédia do campeonato perdido em 1950, marcado pelo mito da nacionalidade divina.
No quarto capítulo, “Um país dividido”, está a polarização do país entre a elite e o povo, com a cultura popular do brincar sistematicamente sabotada por uma cultura minoritária e oficial. No quinto, “O país da bola”, a psicanalista define a estética “mágica e surreal” dos jogadores brasileiros, que cortejam e seduzem a bola como se ela fosse uma mulher. E, se há sedução nesse jogo, a bola é simbolizada como a grande rival da mulher brasileira no sexto capítulo, “A primeira dama”.
O sétimo e definitivo capítulo, “Adeus, vitória?”, chega a ser uma tese filosófica em defesa da liberdade de criar sem imitar ninguém, de brincar e de seguir, com tropical alegria, a imaginação de cada um, jogadores ou não, em busca do prazer e da festa.
Para a autora, o Brasil não vencerá campeonato algum até que siga seu próprio caminho: “Seja como for, driblando, o país da bola um dia emplaca. E o outro morre assassinado por um frango (referência ao epitáfio criado por Nelson Rodrigues para o goleiro Barbosa – ainda vivo – que engoliu o frango da derrota de 1950). Quero crer, até porque sou brasileira, filha de mãe chamada Esperança.”
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1. Sônia Biondo fez carreira no jornalismo impresso, passando depois para a televisão. É diretora do programa Superbonita, do canal GNT, e autora de livros sobre comportamento, beleza e saúde da mulher, como Mulher integral (1999). Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12/12/1989