Michèle Sarde: Marguerite Yourcenar
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Saiu como “A magia simpática de Yourcenar”,
Folha de S. Paulo, 12/06/1994
Depois de ter publicado uma biografia da escritora Colette (1873-1954) que recebeu prêmio da Academia Francesa, Michèle Sarde se tornou famosa pelo livro Regard sur les françaises (“Olhar sobre as francesas”), que estuda a mulher francesa do século X ao XX e igualmente premiado pela Academia. Além de ensaísta, é romancista, autora de Le désir fou (“O desejo louco”) e Histoire d’Eurydice pendant la remontée (“História de Eurídice durante a subida”). Viveu em Washington, onde lecionou na Universidade Georgetown e desde 2001 é professora emérita. Preside a Associação para os Estudos Culturais Franceses. Nasceu em Dinard, na França. Em 2007, voltou a pesquisar a condição feminina em De l’alcôve à l’arène. Un nouvel regard sur les françaises (“Da alcova à arena: Um novo olhar sobre as francesas”). Aposentada, mora parte do ano no Chile e parte na França.
Vous, Marguerite Yourcenar (“Você, Marguerite Yourcenar”) é o título do livro lançado por Michèle Sarde sobre a grande escritora, a primeira mulher a entrar para a Academia Francesa.
Para saber como Yourcenar procedia ao escrever seus romances, por que se exilou nos Estados Unidos, entrevistei Michèle Sarde no seu apartamento de Paris, onde ela todo ano passa suas férias de verão.
Betty Milan: O que a levou a escrever uma biografia de Yourcenar? O fato de viver nos Estados Unidos tantos anos, distante da Europa, como fez ela?
Michèle Sarde: Há muitas razões pelas quais a gente escreve um livro. Mas foi determinante o fato de Yourcenar ter passado cinquenta anos da vida no exílio e ter aí construído sua obra. Queria saber como alguém conseguia preservar sua língua a tal distância do país de origem. Outra razão é que eu havia escrito uma biografia de Colette, e Yourcenar é, para mim, o outro extremo da feminilidade. Aquela se entregava às sensações, esta era uma intelectual. Houve quem dissesse que a escrita de Colette era feminina, enquanto Yourcenar escrevia como um homem. Mas, ao desenvolver o meu trabalho, me dei conta de que elas eram menos diferentes do que se poderia supor. Existe em Yourcenar uma grande sensibilidade em relação à natureza, aos animais, aos seres e, como em Colette, o desinteresse pela glória.
BM: Em que o seu livro é diferente das biografias de Yourcenar já existentes?
SARDE: Não quis escrever uma biografia no sentido tradicional do termo. No fundo, o que me interessava era fazer o que a própria Yourcenar fez quando escreveu Memórias de Adriano ou Labirinto do mundo – a série de livros com crônicas sobre sua família. Nos dois casos, criou as personagens recorrendo ao que ela chamava de “magia simpática”.
BM: O que é “magia simpática”?
SARDE: Consiste, primeiro, em se colocar no contexto exato em que viveu a pessoa cuja vida a gente quer evocar. No caso de Adriano, por exemplo, isso implicou um trabalho de erudição. Ler os livros relativos à época e os que o próprio Adriano leu. No caso do pai de Yourcenar, implicou reconstituir fatos a partir de arquivos, lembrar das histórias que ele havia contado, ler as suas cartas. Depois da reconstituição, a gente deve se projetar na personagem, por uma espécie de ato de simpatia, no sentido literal do termo, ou seja, sofrer ou gozar junto. Foi o que eu fiz, me valendo menos de dados biográficos do que de textos literários, porque acho que um escritor se exprime muito fortemente nos seus textos, e, se a gente os associa à época na qual ele viveu, consegue fazer um bom retrato.
BM: Mas você também usou a correspondência dela.
SARDE: Sim, porque estou preparando a edição das cartas, mas o meu livro para na juventude de Yourcenar, e a correspondência foi escrita no exílio, período em que ela envelheceu. As cartas serviram para confirmar as minhas ideias sobre o período da juventude.
BM: Yourcenar não foi para os Estados Unidos em 1939 para ficar. Por que ficou, então, depois do fim da guerra?
SARDE: Por muitas razões. Existem certamente fatores acidentais e também uma escolha. Ela foi para os Estados Unidos por causa da guerra, porque não tinha um tostão e por causa do convite de Grace Frick, que depois se tornou sua companheira. Esses são os fatores casuais que a levaram a tomar o navio. Ela, aliás, hesitou. Pensou em ir à Grécia, como conselheira cultural, mas não conseguiu o cargo. Foi para os Estados Unidos, a guerra estourou e ela não pôde voltar para a Europa. Durante os anos 1940, não escreveu nada. Foi um tempo de adaptação, que precedeu a escolha e, em 1951, quando Memórias de Adriano obteve grande sucesso, ela resolveu permanecer nos Estados Unidos. Nesse momento, poderia ter voltado para a Europa, mas não quis.
BM: Por que ela não voltou?
SARDE: Certamente, o desejo de não viver o que ela chamava de “vida imóvel”, isto é, se incrustar nos hábitos e preconceitos de uma sociedade. Se ela tivesse ficado na França, sobretudo em Paris, teria sido fácil acomodar-se. A gente poderia contra-argumentar que ela viveu nos Estados Unidos a mesma vida imóvel da qual queria fugir, mas ela não sabia disso quando tomou o navio. Pensava, então, que ir para a América era escolher a viagem. Acredito que tenha havido também um desgosto pela Europa, devido ao genocídio da guerra. Yourcenar escreveu sobre “o crime do homem contra o homem”. Mas existem motivos ligados à própria obra para ela não ter voltado. Yourcenar queria escapar do meio literário francês e de todas as suas convenções. Disse mais tarde que o esnobismo parisiense a teria aprisionado, obrigado a repetir clichês estilísticos, e a única maneira de conservar a independência era permanecer na América. Além disso, ela procurava reconstruir a história humana. Ora, para se distanciar no tempo, nada melhor do que se distanciar no espaço, e a América era um território ideal, por ser um continente onde a memória histórica se apagou. Não há muitos monumentos, não há catedrais. Em certo sentido, isso propiciou o reencontro com o passado anterior ao passado histórico. É bem mais fácil visualizar a pré-história do homem na América do que na Europa, porque a história do homem oculta a sua pré-história. Nos Estados Unidos, ela deparou com o passado extremo, o que chamou em um de seus livros “a noite dos tempos”. O exílio seguramente favoreceu o projeto literário dela.
BM: Numa carta a propósito de uma explosão no castelo da sua infância, Yourcenar diz: “Roma não está mais em Roma, ela está onde eu estou”. Trata-se de uma frase de escritor exilado ou de uma frase que qualquer escritor poderia ter dito?
SARDE: Todo escritor poderia dizer essa frase, porque todos, de certa maneira, estão exilados, mesmo na sua cidade natal. Verdade que, para quem ficou cinquenta anos no exterior, como ela, essa frase tem outra ressonância. Mas ela queria dizer que o tempo destrói os lugares onde a gente viveu e só a imaginação e o trabalho da criação artística e literária permitem reencontrar o tempo passado e se ligar à eternidade. Em Yourcenar, há uma preocupação muito grande com a eternidade, e ela suportou o exílio para alcançá-la. O último livro dela se chama Quoi? L’eternité (“O quê? A eternidade”).
BM: O que era o exílio para Yourcenar?
SARDE: Ela dizia que era a renúncia a certos prazeres que a gente só consegue ter onde nasceu, como ir a um bar e conversar com os amigos na língua materna até bem tarde da noite.
BM: A identidade, para Yourcenar, só depende da língua?
SARDE: No fim da vida, quando ela se pergunta de que é feito o seu sentimento de identidade, se refere à infância, à raça e à língua. A infância, ela reconstituiu nas suas últimas crônicas da família. É o único elemento autobiográfico que temos, e eu acredito que Yourcenar tenha feito essa reconstituição precisamente por já estar então bem afastada da infância. A raça diz respeito à linhagem, aos ancestrais, à continuidade que a ligava à pré-história, e o que ela tentou fazer no Labirinto do mundo foi reconstituir toda a linhagem dos ancestrais, saber quem eram, como viveram. Por fim, existe a língua, o que restou para ela como elemento de ligação à sua cultura. O interessante é que ela foi a primeira mulher a entrar na Academia Francesa e, embora tenha vivido cinquenta anos no exílio, encarnou certo ideal da língua francesa.
BM: Trata-se de um conceito de perfeição da língua que tem a ver com a ideia acadêmica de como a língua deve ser escrita, e não com a estilização da oralidade. Yourcenar é o antiCéline.
SARDE: É, é exatamente isso. Yourcenar era bastante conservadora.
BM: Três meses após a morte de Grace Frick, Yourcenar, então com 76 anos, viajou com um jovem fotógrafo homossexual, Jerry Wilson, que ela amou apaixonadamente. Era de esperar que isso acontecesse?
SARDE: Durante muitos anos, por causa da doença de Grace Frick, Yourcenar ficou prisioneira em Petite Plaisance (“Prazerzinho”), como elas chamavam a casa em que viviam. São os anos de vida imóvel. Acho que a viagem com Jerry Wilson corresponde à volta ao nomadismo na vida de Yourcenar. Do ponto de vista biográfico, isso nos remete ao seu pai, que estava sempre viajando, vivia em hotéis e dizia: “A gente não se importa, a gente não é daqui, a gente vai embora amanhã”.
BM: Yourcenar tinha um péssimo sotaque em inglês, evitava escrever nessa língua e nunca se integrou nos Estados Unidos. Por que acabou adotando a nacionalidade americana?
SARDE: A nacionalidade para ela não tinha a menor importância. Adotou a nacionalidade americana em 1947, perdendo a francesa. Em 1980, foi necessário um processo para que ela a recuperasse e pudesse entrar na Academia Francesa. Yourcenar deixou a Europa para escrever a sua obra e, por causa desta, a Europa foi até ela. A mídia atravessou o Atlântico e chegou aPetite Plaisance. No fim da vida, ela descobriu que pertencia às diferentes culturas que amou, mas sobretudo à cultura francesa.