Marta Suplicy
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, reúne os artigos
“A exemplaridade de Marta”, Folha de S. Paulo,
22/08/2001, e “A prefeita e o seu ex”, Observatório
da Imprensa, edição nº 290, 17/10/2004
A EXEMPLAR
2001
Pela civilidade, Eduardo Suplicy é respeitabilíssimo. Quanto a Marta, ela é exemplar. Não me refiro ao seu desempenho político, que não está em questão aqui, mas ao seu desempenho como mulher.
Ousou dizer “não” ao casamento e “sim” à vida amorosa que ela deseja viver. Isso numa cidade como São Paulo, que não prima pela liberdade das mulheres bem-nascidas — já não são obrigadas a se mostrar atrás de uma gelosia, como no século passado, ou a usar mantilha negra para sair à rua; porém, a maioria ainda faz qualquer negócio para não se separar do marido. No meio rico, o casamento é sagrado.
O “não” de Marta significa que ela não quer mais estar casada. De maneira nenhuma implica uma oposição ao marido, cujo nome ela honrou continuamente na sua vida social e política.
O “não” significa ainda que o amor pode acabar e renascer. A natureza do sentimento amoroso é essa. A música popular não se cansa de dizê-lo, diferenciando amor velho e amor novo, e o poeta Vinicius de Moraes escreveu a propósito disso um verso imortal: “Que seja infinito enquanto dure”.
E, por fim, o “não” evidencia que não basta se casar por amor para que o casamento dure a vida inteira, o que obviamente torna arcaico o “até que a morte nos separe”.
A corajosa Marta tem contra si as mulheres que não concebem a própria existência fora do casamento, os machistas e a igreja. Não é pouco e é mais do que suficiente para tirar o chapéu diante dessa mulher que recusou uma posição em que ela não queria mais estar e se deslocou para outra, enfrentando a opinião pública, surpreendendo tanto o seu eleitorado quanto os que lhe são contrários.
Uma atitude inimaginável quando ela era sexóloga e — como os sexólogos todos — ditava regras de conduta. Por isso mesmo, vale a pena analisar o seu ato surpreendente à luz do poder e da vida. Pensada ou impensadamente, Marta afirmou que acima do poder está a vida e que sem amor a vida não vale nada.
Claro que a prefeita corre sério risco de perder popularidade; porém, a mulher inegavelmente ganhou, afirmando o seu desejo e o direito ao amor. Isso decerto custou muito caro. Ela teve de ir morar sozinha, separando-se do marido e também dos filhos.
O preço da liberdade é sempre alto, e Marta o paga consentidamente. Paga por recusar o masoquismo tão frequente entre as mulheres. Paga por não fazer do nome Suplicy um suplício. E isso é exemplar num contexto social que só nos educou para ser resignadas.
A liberação feminina e a masculina dependem de gestos como o da prefeita, que, por ter corrido o risco de perder o prestígio, mostrou o valor do sentimento amoroso para a vida e liberou as mulheres e os homens casados que não querem ter vida dupla. Por quererem a verdade ou por saberem que as pernas da mentira são sempre curtas.
A PACIFISTA
2004
Marta teve o desejo de se separar e se separou. Depois, sustentou o desejo de casar pela segunda vez e celebrou com pompa o casamento. Sempre manteve com o ex-marido, pai de seus filhos e seu primeiro e maior parceiro político, uma relação cordial, denotando civilidade.
Ao vistoriar as obras da avenida Rebouças, em São Paulo, convidou Eduardo Suplicy para acompanhá-la. Bastou isso para que os dois fossem capa dos jornais e o PSDB publicasse uma nota com o título “Marta e seus dois maridos”. Quem se detém na nota se dá conta de que ela é uma paráfrase tola do livro de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridos. Primeiramente, porque a prefeita tem um marido e um ex-marido. Em segundo lugar, porque tanto um quanto outro são reais, enquanto a personagem de Jorge Amado tinha um marido real e outro que era imaginário.
A tolice é interessante por ser reveladora do arcaísmo que ainda vigora entre nós. Se o fato de a prefeita ter com o ex-marido uma relação cordial é usado para desqualificá-la, é porque, da perspectiva daqueles que a desqualificam, o divórcio implica a exclusão do ex ou da ex. Deste ponto de vista, a amizade entre os sexos não é concebível. Daí a pedir às mulheres casadas que só saiam à rua com uma negra mantilha como no século passado falta pouco. Não é preciso ser petista e nem feminista para recusar a desqualificação. Basta ser moderna.
Quando a prefeita aparece com o ex-marido, ela obviamente está fazendo política — mas a política da inclusão, enquanto a dos seus adversários é a da exclusão. Assim como se exclui o ex-cônjuge, se exclui o judeu, o homossexual, o preto, o pobre… O que a modernidade brasileira e internacional requer é que a memória e a diferença sejam respeitadas.
A brincadeira da oposição é reveladora de uma moral retrógrada, que recusa a instituição legal do divórcio e sustenta a inimizade entre os sexos. Trata-se da moral machista que, além de desautorizar o desejo feminino, privilegia a paixão do ódio. Como nas peças de Nelson Rodrigues: em A falecida, Zulmira declara odiar o marido; em Álbum de família, Dona Senhorinha quer assassinar o marido; em Vestido de noiva, Alaíde alucina matar o marido. Neste universo, a violência é valorizada e a vingança, curtida. Como na música:
Só vingança,
vingança,
vingança
aos santos clamar.
Lupicínio Rodrigues
Por sorte, a prefeita de São Paulo não é Zulmira, nem Dona Senhorinha e tampouco Alaíde. E o seu ex-marido não se reconhece na canção de Lupicínio. Depois de terem sido marido e mulher, reaparecem juntos na imprensa como dois pacifistas. Pela sua elegância, Eduardo Suplicy merece ser chamado de cabo eleitoral vip. Só quem parou no tempo critica.