Manicômio judiciário
Programa Tendências e Debates, 1983
Manicômio Judiciário, 1979. O então juiz corregedor faz uma visita e denuncia o absoluto abandono dos internos. A instituição, que deveria servir para tratar, não passa de uma cadeia, a pior das cadeias, a antessala da morte. Além da ênfase na precariedade das condições de vida dos internos, o juiz questiona a validade dos laudos psiquiátricos em nome dos quais a internação se perpetua, laudos contraditórios que afirmam simultaneamente o comportamento satisfatório do interno e a necessidade de mantê-lo preso em vista de sua periculosidade.
Diante disso, a Justiça se vê na contingência de contrariar a Psiquiatria. Denunciando a ideia fixa de repressão dos alienistas do Manicômio Judiciário, procede a uma revisão dos laudos, liberando 603 pacientes – 320 deles apesar do parecer contrário dos psiquiatras, cuja prática é publicamente ridicularizada. Assim, por exemplo, o caso do psiquiatra que deduz a periculosidade de um interno a partir das bananas que este carregava no bolso.
A Justiça acusava a Psiquiatria, atribuindo-lhe o caráter repressivo e a leviandade no diagnóstico de periculosidade, diagnóstico que, para o interno, é sabidamente uma questão de vida ou morte.
A intervenção do juiz teve o mérito de questionar pela primeira vez no Brasil o saber médico. Na prática, verificou-se consistente, na medida em que, dos 320 indivíduos liberados, só quatro retornaram ao Manicômio. A imprensa e a sociedade civil foram suficientemente alertadas contra o uso que o Estado pode fazer da Psiquiatria, o uso da Psiquiatria como testa de ferro e do psiquiatra como um antagonista do cidadão.
Passada a intervenção do juiz, o Manicômio caiu de novo no esquecimento. Mas, em janeiro de 1981, policiais da Rota foram acionados para controlar uma rebelião no Manicômio Judiciário de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Atacam a tiros os internos rebelados e os reféns, embora não existisse nenhuma arma de fogo entre eles. O massacre, pelo seu caráter publicitário, faz do Manicômio um tema e reivindica-se então que seja transferido da coordenação da Secretaria de Saúde para a Secretaria de Justiça. Na ordem do que fazer, esta medida parecia necessária a funcionários do estabelecimento e a certos setores da sociedade civil, razão pela qual vale deter-se nela.
Verdade que o Manicômio só destrata o preso, que este ali fica sem julgamento e sem assistência, chamado simultaneamente de criminoso e de louco, sem ser punido pelo crime e sem ser tratado pela loucura, que a Medicina só faz diagnosticar repetitivamente. Isso tudo é verdade, mas não seria criminoso, por outro lado, adotar a mesma conduta para o responsável e para o irresponsável? Imputar o inimputável? Punir aquela mãe que, num estado de inconsciência, atira o filho num poço, pratica à sua revelia este ato irreparável de violência contra o outro e contra si mesma?
Não é porque a Psiquiatria funciona hoje como testa de ferro do Estado que se deve recusar o saber clínico, negando a diferença entre o criminoso louco e o que não é, imputando o irresponsável, punindo o crime imposto por uma força à qual o sujeito não pode resistir, fato que confirma a determinação inconsciente e o seu sentido autopunitivo. Denunciar o mau uso da Psiquiatria não deve levar à negação da impunidade – implica a proposta de que o Manicômio seja da alçada exclusiva da Justiça.
O saber clínico pode afirmar com segurança a irresponsabilidade no crime, este ponto é pacífico. O que precisa ser revisto são os critérios de que a Psiquiatria se vale para diagnosticar a periculosidade e, assim, perpetuar a medida de segurança. Incapaz de garantir a repetição ou não do crime e temendo ser responsabilizado pela sua ocorrência, o psiquiatra diagnostica preventivamente a periculosidade e, desse modo, condena injustificadamente o interno.
Tendo em vista a revisão urgente de todos os laudos do Manicômio, é preciso antes de mais nada fixar de modo claro os critérios, as razões que levarão a dizer de um indivíduo se ele é ou não perigoso. Sem esta medida, a fiabilidade do psiquiatra continua ameaçada e a Justiça se priva do único meio de que nós hoje dispomos para agir no caso da inimputabilidade, o recurso ao saber clínico.
Dada a impossibilidade da certeza absoluta numa parte dos casos, é imperioso proceder segundo uma ética nova. Confessar a dúvida e não condenar a partir dela, reconhecer publicamente os limites do saber e não aceitar as exigências da repressão. Um perito que tenha a verdade como critério deveria poder não escamotear o seu “não saber”, o que além de significar uma subversão na prática médica implica correr o risco da reincidência, cuja prevenção, entretanto, não pode ser feita a partir de uma simples suspeita.
Duas são as condições para que este tipo de procedimento possa se efetivar: 1) Dividir o risco da responsabilidade no caso da suspensão da medida de segurança – através do diagnóstico por um conselho de psiquiatras; 2) Assistir o ex-interno para evitar a reincidência no crime.
Eu sugiro que, além da revisão imediata dos laudos por uma equipe de peritos escolhidos especificamente e só para este fim, também se organize um sistema assistencial que funcione a partir do Manicômio, mas fora dele. Um local para os futuros ex-internos, cujo crime não condena necessariamente ao crime, desde que seja possível vencer o imobilismo e abrir as portas de saída.
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Programa Tendências e Debates, Auditório do jornal Folha de S. Paulo, 19 de janeiro de 1983.