Manhas do poder IV

Manhas do poder (1979)

 

IV

P: A sua versatilidade chega a ser assustadora. De que forma você vê a atividade do psicanalista hoje?
BM: Hoje e sempre, o psicanalista é uma pessoa ligada nos fenômenos históricos e no que ocorre à sua volta. Freud não escreveu sobre o fenômeno de massas, a religião, o exército, Leonardo da Vinci? O ponto de partida de Freud não foi a vida cotidiana? Não foi a partir daí que ele elaborou a sua teoria? detendo-se na interpretação dos fatos, autorizando-se a usar a literatura, a pintura, a escultura para testar e enriquecer os seus pontos de vista? Assustadora é a versatilidade de Freud, que nunca reconheceu a chamada “seara alheia”, nunca aceitou a divisão acadêmica do saber e por isso mesmo pôde elaborar um saber novo que dava respostas às questões do seu tempo – questões que se colocavam também para os outros, mas só ele pôde ouvir por ter infringido os limites. Para um psicanalista, tudo é matéria, o assassinato de John Lennon ou o teatro de Nelson Rodrigues.

P: E como você interpretaria o assassinato de Lennon?
BM: O que me impressiona é que o assassino de John Lennon é John Lennon. O que eu quero dizer com isso é que o próprio mito gerou o assassinato. O mito é simultaneamente amado e odiado. Ocupando um lugar que é desejado por todos, ele é invejado. Chapman matou Lennon para ocupar o lugar de Lennon. Fez isso para ser reconhecido, para ter um nome próprio. Assassinou para existir. O assassinato está na lógica da produção do mito John Lennon. De certa forma, Chapman não tinha outra alternativa, e a morte de John Lennon mostra o lado trágico dessa nossa cultura de massa, dessa nossa telecultura.

P: Você falou em Nelson Rodrigues. Por que ele interessa ao psicanalista?
BM: Pelo que ele não cessa de demonstrar em todas as suas peças. Por exemplo, que A Mulher não existe. Que, se não fosse a esposa, a Outra não faria sentido. E que, se não fosse um verdadeiro culto da vingança atravessando as relações entre as mulheres brasileiras, Don Juan já teria – e há muito tempo – perdido terreno entre nós. Um exemplo desse ódio entre as mulheres é o diálogo inicial de A falecida, o diálogo entre Zulmira, personagem central, e Madame Crisálida. Vou ler para você um pequeno fragmento:

Zulmira: Estou numa aflição muito grande.
Madame Crisálida: Vejo, na sua vida, uma mulher.
Zulmira: Mulher?
Madame Crisálida: Loura.
Zulmira: Meu Deus do céu.

Ou seja, não há como ser mulher no Brasil sem temer e imaginar a Outra.

P: Você escreveu um livro sobre o poder – Manhas do poder. O que tem ele a ver com o feminismo, o machismo…
BM: O feminismo é um forma de poder. O machismo idem. Mas não é disso propriamente que eu trato no livro. Me interesso sobretudo pelo poder na umbanda, no hospital psiquiátrico e na iniciação. Procuro mostrar de que forma, através de que manhas, o poder leva a uma submissão consentida.

P: Por que a umbanda?
BM: Porque a umbanda é a religião nacional. Há quem diga que a umbanda é um culto sincrético. Eu digo que a umbanda é o culto do sincretismo e nesse sentido não há nada de mais brasileiro do que ela. Onde, em que outro país, você compraria um quibe numa pastelaria japonesa? Macunaíma, o herói de nossa gente, nasce no fundo da mata virgem e é preto retinto, uma figura sincrética, ele resulta da fusão de elementos inteiramente díspares, como as imagens cultuadas na umbanda, onde eu já vi até uma Pombagira cigana russa.

P: E o poder nos hospícios? Sobre isso você já fez várias matérias nos jornais.
BM: O que me interessa mostrar no livro é que o poder do psiquiatra é imaginário. No ensaio intitulado “Fatalício, o desengano do manicômio”, mostro que o psiquiatra é sujeito de uma lógica que o determina e lhe escapa inteiramente, uma lógica que o obriga a diagnosticar, a rotular e que acaba por fazer do diagnóstico um verdadeiro sintoma do psiquiatra.

P: Você falou das manhas do poder. E das manhas do amor, o que você diria delas?
BM: O amor é manhoso, mas é diferente. No amor, há sempre dois, cujo desejo é ser Um. Já o poder decreta o Um, suprimindo todas as diferenças. O amor é impotente, pois esse desejo de ser Um é impossível, dada a existência de dois, dois sexos. Impotente porque insiste na tentativa sempre frustrada de tornar possível o desejo impossível. Diversamente do amor, para o poder, o impossível não existe.

P: Além de clinicar e de colaborar em jornais, você tem algum projeto novo?
BM: Tenho. Trata-se de uma pesquisa sobre o Carnaval, financiada pela Fapesp e realizada no âmbito do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, que eu e M.D. Magno fundamos e até hoje dirigimos. O título da pesquisa é “O Carnaval, história fantasiada do Brasil”. A razão desse título é a ideia de que o Carnaval é um culto paradoxal do esquecimento, pois nele nós rememoramos a nossa História. Partindo da ideia de que não há como rememorar sem repetir, formulamos a hipótese de que o Carnaval repete a fantasia que presidiu à conquista e à colonização, repete a História fantasiada do Brasil pelo Ocidente e também de que através dele nós damos a nossa versão do Ocidente, nos realizando como brasileiros. Isso fica claro no que diz Joãosinho Trinta, o carnavalesco da Beija-Flor, a propósito do enredo “O Rei de França na Ilha da Assombração” (1974): “Era a invasão francesa no Maranhão vista através dos olhos do rei de França, Luís XIII, que na época da invasão francesa estava com 8 anos de idade. Então, em vez de fazer o enredo como até então se vinha fazendo, retratando apenas fatos históricos, procurei mostrar a invasão vista pelos olhos de uma criança. De repente, ele, que nunca tinha visto índio, floresta, mata virgem, mina de ouro e prata, começou a imaginar esse novo reino de França através dos próprios olhos. Viu a nobreza francesa como índios, só que as penas dos índios, em vez de serem de aves, eram de rendas, as palmeiras se transformavam em candelabros de espelhos, nas matas virgens do Maranhão, ele imaginou todo um salão de espelhos onde as palmeiras eram candelabros”.

P: Como você explica a fantasia do Ocidente sobre o Brasil?
BM: Das fantasias do Ocidente sobre o Brasil, a dominante é a do Brasil como um Paraíso Terreal. É essa a fantasia que exerceu influência imediata sobre todo o esforço colonizador, tendo possivelmente continuado a atuar sobre os destinos dos povos americanos, ainda que subsistisse ao seu lado, desde o começo, uma imagem negadora dessa mesma fantasia. Para os teólogos da Idade Média, o Paraíso Terreal não representava apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no começo dos tempos, não era uma fantasia, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito e porventura acessível. Dentre os elementos inseparáveis das descrições medievais do Éden, encontram-se o da perene primavera e o da invariável temperança do ar. E a primavera incessante das terras recém-descobertas levaria os primeiros visitantes do Novo Mundo a reconhecer aqui a realidade do Éden, mito original que preside à colonização, seja das Índias de Castela, seja do Brasil. Da nossa perspectiva, o Carnaval seria a reatualização dessa fantasia originária inseparável de uma série de motivos como os das entidades misteriosas, fauna antropomórfica, reinos áureos e argênteos, fauna e flora inusitados – motivos que o Carnaval não cessa de reatualizar. Assim, em 1980, o Império Serrano realizou um enredo evocando os povos primitivos que estiveram no Brasil, a Atlântida e o Eldorado, que, segundo o carnavalesco da escola, Ubiratan de Assis, teriam existido aqui. No desfile, vimos então uma fauna e uma flora antropomórficas – crianças vestidas de plantas e de animais –, depois, a Atlântida, toda prata, um reino argênteo presentificado por uma alegoria de cavalos-marinhos e onde de uma concha saía Netuno, rei dos mares. A seguir, o Eldorado, uma alegoria em ouro, encimada por um destaque representando o mensageiro do Eldorado. Precedida por uma imensa cabeça de homem-gato, um dos elementos da fauna antropomórfica que o Império Serrano introduziu na Avenida e que, segundo Ubiratan de Assis, é o símbolo do Eldorado. Outra escola, a Mocidade Independente, com o enredo “Tropicália Maravilha”, em que se pretendia dar uma visão tropicalista do Descobrimento do Brasil, reatualizava o mito do Paraíso Terreal, apresentando no desfile uma flora e uma fauna cuja exuberância evocava as descrições do Éden, o “todo universo não vio”, de Simão de Vasconcelos. Ou seja, o Carnaval representa uma nova versão do Brasil, e o que me interessa saber é em que medida esta versão repete a do Ocidente colonizador e em que se diferencia dela, produzindo uma versão do Brasil sobre o Ocidente mediante a qual deixamos de ser objeto do desejo alheio para nos tornar sujeitos da História. “O Rei de França na Ilha da Assombração” é nisso exemplar. Joãosinho Trinta queria no enredo mostrar a invasão francesa no Maranhão vista através dos olhos de Luís XIII. O Carnaval satiricamente fazia então do nobre um índio, evidenciando o estrabismo de um olhar que via candelabros onde havia palmeiras, salões de espelhos onde só as matas virgens. Alienando o Brasil nos candelabros e salões de espelhos da nossa tão venerada França, o Carnaval fazia simultaneamente a nossa sátira do etnocentrismo para produzir em ritmo de samba um outro discurso – o nosso.

P: O Carnaval faz parte da identidade brasileira.
BM: Sumariamente, eu poderia dizer que o Carnaval é o culto paradoxal do esquecimento através do qual rememoramos a nossa história, realizando a nossa identidade. Mas rememorar é repetir. Segundo Freud, o limite do que o sujeito pode rememorar é aquilo que inconscientemente se repetirá e se encontra na história dos seus antepassados, na cultura em que ele está inscrito. Isso posto, justifica-se perguntar que relação existe entre a história fantasiada do Brasil, feita pelo Carnaval, e aquela originária da conquista e da colonização, ou ainda, se na rememoração carnavalesca da nossa História há uma repetição da fantasia do Ocidente sobre o Brasil.

P: E o que você diz da ideia de que o Carnaval é cada vez menos brasileiro?
BM: Aí eu estou com Joãosinho Trinta e não abro. Numa das entrevistas que ele me deu, disse o seguinte: “Me parece uma visão curta a das pessoas que não entendem que não se pode falar do Brasil sem falar das coisas do mundo inteiro. Posso perfeitamente fazer um enredo chamado ‘O Chapéu de Napoleão’ e falar de um assunto muito brasileiro, que é a chegada de D. João VI, eu posso perfeitamente falar de Napoleão e assim de quantos outros assuntos?”. Joãosinho diz mesmo que ninguém está mais próximo das raízes do Carnaval brasileiro do que ele no atual enredo da Beija-Flor, e pergunta: “Quem não fantasiou seu filho de mexicano, de tirolês, de egípcio, de grego? Então, são exatamente essas fantasias que eu venho trazer para o Carnaval. Pode haver coisa mais brasileira, mais dentro do nosso espírito, do que você ver uma crioula, uma mulata vestida de grega? Pode haver coisa mais brasileira, pode haver espírito mais carnavalesco do que você de repente pegar a muralha da China e trazer para a Marquês de Sapucaí?”. O Carnaval carnavaliza, transforma, dessacraliza o passado, mas, nesse mesmo ato, ele obriga a rememorar, o que num país sem memória, descoberto por acaso e cuja independência foi feita num grito, é decisivo. Além de ser um culto paradoxal do esquecimento, é uma dessacralização necessária da cultura europeia através da qual nós produzimos a nossa. O Carnaval é o melting pot fantástico do futuro.

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Entrevista concedida ao jornal Conflito no 6, publicação da Associação de Psiquiatria da Bahia, Salvador, junho, 1980.