A mãe eterna de Betty Milan – e algumas observações sobre recepção e ambivalência, por Claudio Willer

A mãe eterna de Betty Milan
e algumas observações sobre recepção e ambivalência

Claudio Willer

 

A Mãe Eterna

 

Quando foi publicada a mais recente narrativa de Betty Milan, A mãe eterna[1], escrevi duas laudas a respeito, que agora apresento com acréscimos neste Academia.edu. Portanto, é um texto inédito. Apesar do livro ter tido uma excelente recepção comercial, com seis mil exemplares imediatamente vendidos, não houve, desta vez, registros na imprensa. Terá sido porque incomodou pela ambivalência, pela propositada confusão entre realidade e ficção? Ou será apenas um sintoma do gradativo desaparecimento da literatura na imprensa, como parte ou sintoma de uma crise mais geral que transforma jornais em meros boletins noticiosos?

Vejo esta narrativa mais recente de Betty Milan em relação íntima com duas anteriores, Carta ao filho[2] e Consolação[3]. Isso, não obstante as diferenças óbvias: enquanto já designei Carta ao filho como “amplo painel”, esta é a mais intimista das três. Camerística, diria, onde Carta ao filho é sinfônica. Agora, a ação transcorre entre duas moradias em São Paulo, próximas. A anterior, também narrativa de viagens, passa-se no mundo todo.

O que as atravessa ou liga? Além da fala na primeira pessoa e de evocações que podem ter base biográfica, a morte. Ou não propriamente a morte, apenas, porém a tensão entre morte e vida. O subtítulo deste “memento mori”, um alerta de que somos todos transitórios no mundo, é “morrer é um direito”. Também valeria para Consolação, não obstante relatar situações e mostrar personagens tão diferentes. Naquele, a morte sobrevém ao término de uma dolorosa agonia; neste, é acompanhada a decadência física natural de alguém que chegou à idade de 98 anos.

O direito de morrer do subtítulo é afirmado e reivindicado:

Não quero viver com o que terá sobrado de mim. O aumento da sobrevida está danificando a sua vida. Por que nos incutiram a idéia de que estar vivo é só o que importa e que nós estamos vivos enquanto o corpo resiste?[4]

Insurge-se contra o “ponto de vista do médico”. Desfere anátemas:

Por que o médico não pode te ajudar a ir embora? Cuidar da vida também é isso. Por que ele não aceita a norte? Segundo a mitologia grega, além de ser capaz de curar, Asclépio era capaz de ressuscitar os mortos. Zeus o aniquilou por não querer que os mortais tivessem poder sobre a morte.[5]

Estende-os ao “padre”, para quem “cabe a Deus decidir quando e como devemos morrer”. Manifesta-se contra as autoridades. E, diria, contra o dualismo, a separação das duas condições, de morte e vida, de modo tal que uma exclui ou recalca a outra.

Life against DeathThe Psychoanalytical Meaning of History de Norman O. Brown[6] é um colossal comentário sobre a contribuição de Freud. E que ajuda a mostrar o alcance do que Betty Milan vem criando. Brown observa que o homem é a espécie que separa vida e morte; que “não é a consciência da morte, mas a fuga da morte que distingue o homem dos animais”. O mesmo também é dito por Betty.

O formulador de uma teoria psicanalítica da história ainda afirma:

Se a morte é uma parte da vida, se existe um instinto de morte assim como um instinto da vida (ou sexual), o homem está em fuga de sua própria morte assim como está em fuga da sua própria sexualidade. Se a morte é uma parte da vida, o homem reprime sua própria morte assim como reprime sua própria vida.[7]

Brown argumenta que o andrógino de Platão e das mitologias simboliza a superação dessa dualidade de vida e morte. Talvez isso adicione sentido á insistência de Betty na androginia, na atração por homens que podem ser femininos (e vice-versa), em Carta ao filho.

Aceita essa argumentação – complexa e que simplifico ao recortar apenas algumas frases de Brown – então o subtítulo desta obra de Betty também poderia ser, por reciprocidade, “viver é um direito”. E valeriam novas comparações com sua literatura de celebração de Eros, a exemplo de A trilogia do amor.

Continuidades: não posso furtar-me a relacionar o que vejo em A mãe eterna a alguns comentários que escrevi sobre Carta ao filho, relativos à memória. Citei, de T. S. Eliot em um dos Quatro quartetos, “Esta é a função da memória: Libertação”. E comentei a identificação da anamnese ao conhecimento e à liberação em Platão. Betty reitera; ou melhor, a narradora criada por ela reitera, dirigindo-se á anciã: “Você não está louca, está perdendo seu maior tesouro: a memória”[8]. E ainda diz, referindo-se à perda prematura do pai: “Foi com a rememoração que você evitou nossa orfandade”

Mas Platão foi dualista. Sua anamnese é memória não só de outra vida, mas de outro tempo, anterior ao nosso, cronológico. Tratou da libertação para chegar a outra esfera. Já em Freud, no Freud inicial dos estudos sobre a histeria, recuperar a memória, a capacidade de lembrar o acontecimento traumático, seria o caminho para a cura. Betty é monista e vitalista: reivindica a realização da vida e o correlato ou conseqüente reconhecimento da morte no aqui e agora, na imanência.

Narrativa breve, em tom contido, descreve com inequívoca ternura as táticas e negaceios da idosa para contornar ou negar a perda do vigor e da autonomia. Fluente, escrito como se a autora falasse. Cresce, ganha pathos, intensidade, no capítulo final. Encerra-se com uma bela prosa poética, da qual não resisto a citar um trecho: “Não sabia ainda que, sem que eu fizesse esforço, você renasceria no meu coração e nós continuaríamos juntas. Vai ser enterrada num caixão de mogno, como combinado, e vai entrar no túmulo da família ao som de um silêncio grandioso – o dos que nunca renunciaram à independência.”[9]

Eu grifaria “ao som de um silêncio grandioso”. Através de oximoros, paradoxos aparentes, é celebrada a superação. Algo pode ser seu aparente oposto. E a morte se torna reafirmação da vida. Ao menos, através da criação literária; da poesia.

Para a sessão de autógrafos de A mãe eterna, Betty trouxe sua mãe – a dona Rosa real. Leitores podem ter reparado na diferença entre a afável nonagenária, visivelmente satisfeita com a boa acolhida ao lançamento da filha, e aquela, bem mais decrépita, cuja precariedade é descrita no livro. Nesse caso, o episódio – a presença física da suposta personagem – terá tido valor didático, ao mostrar que a literatura cria um mundo, e que esse mundo é e simultaneamente não é real.

Lembro, a propósito das complexas relações entre “ficção” e “realidade”, algumas observações de William Burroughs, tratando de obras de Jack Kerouac nas quais ele, Burroughs, teria sido um dos personagens,e do quanto o autor de On the Road falseava acontecimentos reais, ficcionalizando-os:

Assim, a questão não é ‘Isso aconteceu desse modo?’, mas, ‘Como Jack teria escrito isso?’ […] Cada escritor cria seu próprio universo. Quando você compra um livro, você está comprando um bilhete para viajar no tempo do escritor.[10]

Um bom tempo atrás, em uma roda de leitura para iniciantes, examinamos “O Aleph”, o magistral conto de Jorge Luis Borges. Ao comentarem e tentarem interpretar o que haviam lido, alguns dos participantes se referiam ao protagonista como “ele”; como que pressupondo que a descoberta de uma partícula que continha todos os lugares e todos os tempos do universo tivesse efetivamente acontecido com o narrador-protagonista – mesmo naquele ataque frontal à mimese. Pode ser que alguma dificuldade em separar os dois planos, da “realidade” e da “ficção”, justamente por se confundirem e se projetarem um no outro, mas de um modo complexo e tão ambivalente, tenha interferido na recepção do livro. Isso, apesar da imediata vendagem elevada, que incluiu, talvez, alguns compradores mais precipitados, achando que A mãe eterna serviria como um ótimo presente para o Dia das Mães.

 

 

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[1] Rio de Janeiro: Record, 2016

[2] Record, 2013 (primeira edição).

[3] Também da editora Record, 2009.

[4] p. 38.

[5] p. 45.

[6] Wesleyan University Press, 1985 (reedição, pois o livro foi publicado em 1959)

[7] p. 104.

[8] p. 56.

[9] p. 141.

[10] “Heart Beat: Fifties Heroes as Soap Opera”, publicado em The Rolling Stone book of the Beats, organizado por Holly-George-Warren, Rolling Stone Press, 1999.