Luto no planeta
bettymilan
Folha de S. Paulo, Opinião. 10/09/22
Morte de Elizabeth II, a rainha. A França não faz parte da Commonwealth e a Inglaterra deixou de ser membro da União Européia. No entanto, a bandeira da Inglaterra foi suspensa no Palácio do Eliseu.
Emmanuel Macron fez em inglês a merecida homenagem a Elizabeth II: « Sua sabedoria e sua empatia nos ajudou a traçar uma via na história destes últimos 70 anos. Sua morte deixou um sentimento de vazio… A coragem de uma vida marcada pela guerra defendendo de um a outro século os valores que são a liberdade e a tenacidade… Um discurso raro mas poderoso e a dignidade inabalável fizeram dela um símbolo permanente do Reino-Unido…Nenhum outro país teve o privilégio de recebê-la tão frequentemente quanto a França… Uma grande chefe de estado, um exemplo único de devoção ao seu povo e uma aliada…Graças a ela, entre a França e o Reino Unido havia não apenas um « entendimento cordial » e sim uma parceria leal, sincera e calorosa… Para os ingleses ela era a sua rainha. Para nós, ela era a Rainha… Comemoramos e perpetuaremos os valores que ela não cessou de incarnar e promover: a força moral da democracia e da liberdade. A rainha nos fará uma profunda falta ».
A quem ela não fará falta num mundo que se confronta com a guerra e a ascenção de valores anti-democráticos? Macron falou pelos franceses e pelos outros cujos valores a vida da rainha Elizabeth celebrava.
Mas não foi por uma razão de estado que a morte dela me tocou e eu me perguntei por que? Me ocorreu primeiro que o seu nome foi o que minha mãe escolheu para mim – como muitas outras mães da mesma geração. A rainha foi um ícone para nossas mães e também por elas eu estou de luto. Sim, pelas que já se foram, as que viam nela o símbolo de uma grande mulher.
Há uma segunda razão pela qual a morte me tocou. A rainha da qual nós nos despedimos era a segunda Elizabeth e a primeira foi solar. Vingou a decapitação da mãe, Ana Bolena, segunda mulher de Henrique VIII, acusada de adultério e decapitada – para que o rei pudesse se casar de novo e ter um filho homem, ou seja, « um verdadeiro sucessor ».
Afim de evitar a instabilidade política, Elizabeth I recusou o casamento, razão pela qual foi chamada de Rainha Virgem. Casou-se com o seu reino e se dirigia às pessoas do povo, chamando-as de maridos. À sua maneira, no seu tempo, ela foi uma feminista. O reino de Elizabeth I ficou conhecido como a era elizabetana pelo apoio ao teatro, particularmente o de Shakespeare, cujas peças eram mais apresentadas na sua corte do que as de qualquer outro. Porque, como diz Harold Bloom, “Shakespeare inventou o humano”. Inventou expressando os nossos dramas subjetivos como nunca antes.
Também a Elizabeth I nós devemos a consagração deste dramaturgo cujos textos permanecem vivos até os nossos dias. O to be or not to be proferido por Hamlet foi alegremente devorado no Brasil pelos modernistas e se transformou no tupi or not tupi do Manifesto Antropófago de Oswald.
No seu primeiro discurso, Elizabeth I manifestou o desejo de deixar um consolo para os que viessem depois. Foi o que Elizabeth II, na trilha da sua grande antecessora do século XVI, desejou. Daí a tristeza que a desaparição causa.
Não está mais entre os vivos e, no entanto, está. Sempre imaginei – talvez por ter o nome dela – que Elizabeth II era imortal. Agora, sou obrigada a reconhecer que me enganei. Queira ou não, o tempo passa para todos.
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Betty Milan é escritora e psicanalista, autora entre outros de O Papagaio e o Doutor e Baal, membro da Academia Paulista de Letras