Literatura, memória e censura

Literatura, memória e censura

Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, 1997

 

“Lembra-te” é o imperativo em torno do qual se estrutura o Hamlet de Shakespeare. “Lembra que eu fui traído”, diz o fantasma, que entra em cena para cobrar a vingança. E é porque Hamlet responde cegamente ao imperativo que ele mata e morre. O herói trágico é vítima do seu passado por não poder se distanciar dele, por não focalizar a história de outro ângulo, e, assim, iluminar os fatos de maneira nova.

À diferença de Hamlet, o escritor se lembra do passado para reinventá-lo, ele rememora para se liberar. Não obedece ao fantasma, modifica a história. Afasta de si a repetição através da rememoração. Desta água mortífera eu não bebo, diz ele, e, com isso, deixa aberta a porta da esperança.

Hamlet não escapa ao seu destino trágico, mas Shakespeare lhe dá a possibilidade de morrer na certeza de que um amigo, Horácio, continuará a servir a sua causa. Tudo está perdido e, no entanto, nem tudo, porque Shakespeare nos dá a entender que a ética da amizade é vitoriosa, a ética de que a literatura tanto depende. Joyce é um exemplo disso. Não fosse por alguns dos seus alunos, ele não teria se instalado na Suíça – um país neutro — durante a Primeira Guerra Mundial. E sem o apoio de Margaret Anderson, o Ulisses não teria sido editado, tamanha a censura dos ingleses contra o livro.

O escritor vive às voltas com duas censuras. Uma delas é social e a outra, intrínseca ao seu ofício. Pode-se afirmar que o fazer da literatura é o de quem atura a letra. Atura, porque a letra, se não a língua, pode cercear. O Graciliano do Memórias do cárcere sabia disso: “Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social”(1).

Graciliano Ramos, aliás, tanto sabia do seu cerceamento quanto do seu contrário e, por isso, escreveu que “nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos nos mexer”(2). O escritor nunca duvidou do alcance do seu ofício. Por isso opôs à memória curta dos contemporâneos a força da sua rememoração. Com esta, ele mais fez o país do que os discursos rebarbativamente utilitários – para não dizer autoritários. Tanto fez o Brasil, impedindo que ele se esquecesse da sua história política, quanto a literatura internacional, porque foi um precursor. O pavilhão dos cancerosos, de Soljenítsin é bem posterior às Memórias do cárcere.

Mas de que serve a literatura que não deve servir para nada que não seja a literatura?

Basta pensar nos tantos autores hoje perseguidos para dizer que ela serve desservindo o absolutismo e favorecendo a liberdade. Ninguém ignora que o autor dos Versículos satânicos, Salman Rushdie, foi condenado à morte porque se autorizou a fazer com o Alcorão um romance, deu asas ao seu imaginário para escrever uma nova versão do texto sagrado e contestou assim a ideia de que existe uma única verdade sobre ele.

Se a literatura não pudesse desbancar os aiatolás, não haveria perseguição. E é ela que perdura, precisamente por ser contrária ao dogmatismo, porque deixa a ambiguidade vigorar. Digamos que ela reconhece a autoridade da letra e faz pouco do autoritarismo do poder. Motivo pelo qual, em Bangladesh, os integristas condenaram Taslima Nasreen; na Argélia, cortaram a garganta de dezenas de escritores; no Cairo, financiaram o ataque que poderia ter custado a vida a Naguib Mahfouz, Prêmio Nobel de Literatura.

Os exemplos citados são relativos a países subdesenvolvidos. Nos países ditos desenvolvidos, existe a suposição de que a literatura não serve para nada. A ideia que sustenta esta suposição é a de que basta viver numa democracia para ser livre. Mas isso não passa de uma fantasia, pois o discurso que nos forma – o da escola – e o discurso que nos informa – o da mídia – tendem a ser dogmáticos. Os aiatolás estão em toda parte, enquadrando o sujeito e dele requerendo uma produção que não seja contrária aos dogmas. Por esta razão, o exemplo do escritor é essencial. Porque ele ousa imaginar espaços onde a irreverência é possível e a ambiguidade não implica a reprovação.

Com a Emília de Monteiro Lobato, nós aprendemos a não temer os doutores e o seu saber inacessível. O filósofo das suas célebres Memórias “diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando”(3). Emília ensina a fazer pouco da sisudez oficial, e os poetas a dar a entender poeticamente, sem explicar. Porque autorizam a escrever, por exemplo: “no meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra”(4).

Não somos quem somos sem os nossos escritores. Graças a eles nos tornamos mais livres na relação com o saber e com a língua. O que seríamos sem Mário de Andrade? É possível que estivéssemos ainda telefonando a Lisboa para saber como se escreve e o que se pode escrever.

O que, aliás, é fundamental, porque é graças à literatura que escrevemos o que não se escreve através da ciência ou através da filosofia, por só vir à tona a partir do trabalho do escritor com as palavras. Não fosse uma das frases mais célebres de Shakespeare, o “My kingdom for a horse”, frase tão concreta quanto metafórica, nós não teríamos ciência alguma de um sentimento próprio à nossa condição, de um desespero em que todos podemos nos reconhecer – porque todo homem tem o seu império e o momento em que ele o entregaria para não morrer.

A literatura é tão necessária à liberdade quanto à reflexão sobre a existência. O “to be or not to be” de Hamlet – alternativa de que Oswald se valeu para fazer o “tupi or not tupi” – é, estranhamente, tão atual hoje quanto no tempo de Shakespeare. Quem não se coloca o “to be or not to be” num momento ou noutro de sua vida?

De maneiras diversas, todos somos como o herói shakespeariano. Nascemos de um pai e de uma mãe e estamos sujeitos aos imperativos dos ancestrais, tendo a eles que dizer sim ou não. Seja qual for a nossa nacionalidade, nós somos Hamlet, e as considerações dele sobre a condição humana servem para nos fazer pensar.

A literatura tem no Ocidente uma função que equivale à do budismo no Oriente, porque ela propicia a meditação. Como tão bem diz Paul Virilio, o urbanista filósofo, “há tantas Madames Bovary quantos leitores”. Porque a literatura provoca imagens mentais, ela mobiliza o sujeito, ao contrário do cinema, que o desmobiliza por favorecer a identificação.

Com Hamlet, nós podemos aprender que a ficção pode revelar a verdade. Ele então não recorre ao teatro para mostrar que não ignora o assassinato do pai? O recurso shakespeariano da peça no interior da peça mostra o alcance da ficção.

O título que, aliás, primeiro ocorreu a Marcel Proust para À procura do tempo perdido foi À procura da verdade. Isso porque, à sua maneira, a literatura está comprometida com a verdade. Por tal compromisso, a censura se abate sobre ela, e os escritores são tratados como inimigos por aqueles que não suportam a produção de uma verdade diferente da sua.

Não tendo limites nem fronteiras, o espírito criador desconhece inevitavelmente a autoridade dos censores, e o artista, por sua posição, está exposto à violência. Como diz Salman Rusdhie, na sua Carta de Princípios, “não é a arte que é fraca, o artista é que é vulnerável. A poesia de Ovídio sobreviveu; a vida de Ovídio foi miserável por causa dos poderosos. A poesia de Mandelstam continua viva; o poeta foi assassinado pelo tirano que ele ousou nomear”(5).

A vulnerabilidade do escritor é incontestável; é por isso que ele hoje se mobiliza para se proteger. Depois do assassinato, em 1993, de dezenas de intelectuais na Argélia, um grupo de cinquenta europeus e americanos fundou o Parlamento Internacional dos Escritores, reivindicando a autonomia da literatura em relação aos diferentes poderes.

Salman Rushdie foi então convidado para presidir o conselho do Parlamento e redigiu uma Carta de Princípios. Diz nela que os escritores são os cidadãos de muitos países e a literatura se opõe à tirania “não de maneira polêmica, mas negando-lhe a autoridade, trilhando o seu próprio caminho, declarando-se independente”. Conclui afirmando que o Parlamento existe para lutar pelos escritores oprimidos e renovar incessantemente a declaração de independência, “sem a qual a escrita é impossível; e não somente a escrita, mas o sonho; e não somente o sonho, mas o pensamento; e não somente o pensamento, mas a própria liberdade”(6).

Os membros do Parlamento, consequentemente, têm como princípio da sua ação a liberdade relativamente aos diferentes poderes e ortodoxias, bem como o internacionalismo, baseado no conhecimento e no reconhecimento da diversidade das tradições históricas.

O Parlamento Internaconal dos Escritores está associado a uma rede de cidades-refúgio que se solidariza com os escritores condenados ao exílio ou ameaçados nos seus países. Da rede, fazem parte Almería, Berlim, Caen, Estrasburgo, Gotemburgo, Stavanger, Valladolid, Swansea, Veneza, entre outras.

A importância destas cidades-refúgio pode ser avaliada se considerarmos que Brecht, Thomas Mann, Fritz Lang, Schoenberg sobreviveram, nos anos 1930, graças à acolhida dos Estados Unidos.

A política da rede, sugerida por Jacques Derrida, é a cosmopolítica, que implica uma resposta imediata das cidades ao crime, à violência e à perseguição a que estão sujeitos os criadores de muitos países – Argélia, Irã, Egito, Turquia, Nigéria, China… Uma resposta necessária diante da forma atual da censura, que já não é exercida pelo Estado e sim por grupos de fanáticos assassinos, frequentemente anônimos.

Fazer parte da rede custa pouco e significa muito, porque implica a defesa da ideia de cidade aberta e de cidadania multicultural, conforme desejava Oswald de Andrade, que não nos queria perdidos no mapa-múndi do Brasil.

Por estar a 10 mil quilômetros de Estrasburgo, o Brasil não pode ser indiferente à questão levantada pelo Parlamento Internacional dos Escritores, que espera do nosso país a acolhida que ele pode dar. Pode e deve, para se enriquecer com o imaginário dos outros povos e enriquecê-los com os temas do seu imaginário mestiço. Para ouvir línguas que não são faladas aqui e para que a poesia da nossa língua seja ouvida noutras plagas. Para que o gênio da nossa cultura possa se espraiar e as escritas que estilizam a oralidade, se impor.

O Brasil deve uma cidade-refúgio ao Parlamento Internacional dos Escritores, porque é preciso encontrar o outro para aprender. Porque só o encontro dos que não são semelhantes leva ao exercício da tolerância, sem a qual não há liberdade e não há paz.

 

________

7ª Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo (RS), setembro de 1997.

(1) Ramos, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro: Record, 1972. p. 34.
(2) Id. Ibid.
(3) Lobato, Monteiro. Memórias de Emília. São Paulo: Brasiliense, 1959.
(4) “No meio do caminho” é um dos poemas do poeta Carlos Drummonde de Andrade mais conhecidos e discutidos do modernismo literário brasileiro, foi publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, em 1928.
(5) A Carta de Princípios foi escrita por Salman Rushdie, à epoca da fundação do Parlamento Internacional dos Escritores, em novembro de 1993.
(6) Id. Ibid.