Literatura e memória

Literatura e memória

Universidade Federal de Ouro Preto, 2007

 

Se eu fosse crítica literária, talvez partisse do título da obra de Proust, À la recherche du temps perdu, para tratar do tema Literatura e Memória. Proust preferiu o título Em busca do tempo perdido ao que ele havia escolhido antes, À la recherche de la vérité. Abriu mão da palavra verdade e ficou com o tempo perdido. Por quê? Há várias interpretações possíveis.

Do meu ponto de vista, Proust privilegiou o tempo porque este é real, enquanto a verdade pode ser imaginária. Lacan dizia que a verdade não existe. Do tempo que passa ninguém duvida, é ele que dá sentido à condição humana.

A literatura se ocupa do amor, da vida e da morte, que são indissociáveis do tempo que passa. Assim, referindo-se ao amor, Manuel Bandeira diz: “Bem que velho, te reclamo. Bem que velho, te desejo, quero e chamo”. Referindo-se à vida, Shakespeare diz: “Life is but a walking shadow” (A vida é uma sombra que passa). Referindo-se à morte, Sêneca diz: “Devemos aprender a viver a vida inteira e, durante a vida inteira, devemos aprender a morrer”. O tempo que passa é o tema de Bandeira, de Shakespeare e de Sêneca.

Quem fala desse tempo é levado a rememorar, e é por isso que a memória alimenta continuamente a literatura. Mas eu não vou falar da literatura em geral. Vou me debruçar sobre a que eu faço, porque é dela que eu sei e posso falar com conhecimento de causa.

Meu trabalho de escrever é indissociável do meu primeiro ofício, o de psicanalista, que tanto implica a rememoração quanto a escuta. Com a Psicanálise, aprendi que quem rememora pode superar a repetição e inventar uma existência nova. Aprendi também a escutar a palavra como se ela fosse uma palavra escrita. Ou seja, tratar o discurso como se ele fosse um texto.

Isso me preparou para escrever estilizando a fala, e eu me reconheci na tradição literária da minha cidade, a dos modernistas. Mário de Andrade zombava dos escritores que se submetiam às regras gramaticais, dos que telefonavam para Lisboa a fim de saber como se escreve. Para quem não conhece este Mário, ele também dizia que tiveram que destroçar as formas velhas e amarrar a língua escrita na língua falada.

Escrever, para mim, é amarrar a língua escrita na língua falada e, em todos os meus livros, a rememoração é central. Talvez por causa da minha origem, pelo fato de ser neta de imigrante. A origem me fez valorizar o passado, porque o imigrante tende a recalcá-lo, ele quer que o passado seja apenas o prólogo do futuro.

Para dar mais concretude ao que estou dizendo, vou falar de um romance meu publicado no Brasil em 1991 e depois na França e na Argentina, O Papagaio e o Doutor. O Papagaio do título diz respeito a uma heroína brasileira, Seriema. O Doutor é claramente inspirado em Lacan. Seriema faz análise com o Doutor e dele se afasta sem se separar. A fim de se separar, a heroína do romance precisa rememorar a história dos seus antepassados, a história recalcada da imigração, o livro é o processo de rememoração. Assim, logo de saída, Seriema diz: “É para não mais responder aos imperativos do grande homem, para dele me separar, que eu devo rememorar o ocorrido. Queira ou não, eu disso dependo para descobrir o que ainda me amarra”(1).

A partir daí, ela se entrega à memória, até se separar do Doutor. Nessa itinerância, é o drama da imigração que aparece, o da perda de identidade e o enigma das origens para os filhos de imigrantes, para os que perderam o fio da sua linhagem. Ao fim e ao cabo, a heroína se reconcilia consigo mesma e com os seus ancestrais. Pode deixar a França para, enfim, viver na língua do ão, do admirabilíssimo ão, como dizia Mário de Andrade. Renasce mestiça, turca, brasileira, sem vergonha da sua cor de oliva – a cor das origens – e assume um futuro redefinido como “uma nova memória do passado”, um futuro sobre o qual não pesa mais a repetição.

Debruçando-se sobre a imigração e a diáspora, Seriema coloca questões atuais. Ela se pergunta, por exemplo, se o descendente de imigrante precisa renegar suas origens para se integrar no seu país. Isso porque o imigrante deseja esquecer a travessia. Tanto por causa da separação real que a travessia supõe – ele deixa um país por outro – quanto pela mutilação simbólica que a travessia implica – a perda do contexto onde o nome era significativo.

A resposta que Seriema encontra para sua questão é que o preço da integração não pode ser a xenofobia. Com isso, ela deixa de ter vergonha de si mesma e da cultura mestiça na qual se formou. Noutras palavras, deixa de ser papagaio de Doutor para se valorizar e reconquistar com isso a língua portuguesa do Brasil, a língua quase cantada do seu país natal. Como escreveu Michèle Sarde na quarta capa da tradução francesa: “Seriema vai procurar a sua alma na capital do espírito, Paris, e aí descobre que ela se encontra no seu país de origem, o Brasil, e o espírito paira em todo lugar”.

Isso posto, quero dizer que o espírito paira em todo lugar onde a liberdade é possível. Sem ela, a vida não vale a pena e a literatura não existe. A condição essencial da atividade literária é que o escritor possa se expressar livremente, reinventando a língua, que é a sua principal morada. O único compromisso do escritor é com a sua arte e, se ele por isso tiver que pagar, ele paga.

Como Dante, que foi para o exílio por razões políticas, porém se entregou à escrita da Divina Comédia durante dezessete anos, usando as palavras para dizer o inefável e para nos legar um texto que é o suprassumo da poesia – pela beleza dos seus versos e do ritmo. O escritor paga como Dante ou paga como Rabelais, que foi obrigado a se exilar em Metz por causa do terceiro livro do Pantagruel e que aí, na cidade de Metz, desacatou a censura, escrevendo mais um livro, considerado ímpio pelos católicos e pelos protestantes – o quarto livro do Pantagruel. Dante, Rabelais e Sade, o maior dos libertários, encarcerado no hospício de Charenton, onde escreveu suas últimas obras e morreu. No século XIX, Flaubert, que respondeu a processo por ofensa à moral pública e religiosa ao publicar Madame Bovary, a primeira de uma legião de adúlteras célebres. No século XX, Joyce, que, para escapar ao modo irlandês e católico, se exilou na Europa continental e viveu com muita dificuldade até, enfim, se instalar em Paris e publicar o Ulisses.

A enumeração é infindável, e eu só quero ainda, nesta mesa sobre literatura e memória, rememorar Salman Rushdie, que, ao publicar Os versos satânicos, foi condenado à morte sob o pretexto de ter blasfemado contra o Islã. Quem leu o romance sabe que Rushdie trata a modernidade ocidental com o maior ceticismo e mostra como os textos sagrados do Islã são aviltados pela televisão e pela publicidade. Foi condenado porque o espírito teocrático não aceita a ambiguidade que vigora no romance. Na verdade, não aceita o romance, porque este é contrário à afirmação de uma verdade única.

Foi para defender a literatura que Rushdie escreveu na sua Declaração de Independência(2):

 

“Os escritores são os cidadãos de muitos países: o país limitado e ladeado pelas fronteiras da realidade observável e da vida cotidiana, o reino infinito da imaginação, a terra semiperdida da memória, as federações do coração simultaneamente incandescentes e geladas, os estados unidos do espírito (calmos e turbulentos, largos e estreitos, regulados e desregulados), as nações celestes e infernais do desejo e – talvez a mais importante das nossas moradas – a república sem entraves da língua. A arte da literatura exige, como condição essencial, que o escritor possa circular entre esses numerosos países como bem entender, sem necesssidade de passaporte ou visto, fazendo o que quiser com eles e consigo mesmo”.

 

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Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, 3 de novembro de 2007.

(1) Milan, Betty. O Papagaio e o Doutor. Rio de Janeiro: Record, 1998.
(2) A Declaração de Independência foi escrita por Salman Rushdie, à época da fundação do Parlamento Internacional dos Escritores, em novembro de 1993.