Lacan ainda
Marco Antônio Coutinho*
Narrar a própria análise implica necessariamente um desnudamento, cujo exemplo, dado muito cedo por Freud, foi seguido por poucos. “Fiz análise para me curar de mim”— é com essa revelação impactante que o leitor é arrebatado no vórtice do testemunho da análise de Betty Milan com Jacques Lacan.
Em seu relato, a escritora e a psicanalista se dão as mãos para contar a saga da analisanda e nos levar a frequentar uma temporalidade inédita, que condensa vivência e fantasia, infância e idade adulta — da megalópole paulista e do “ar de Paris” à aldeia libanesa e o carnaval carioca.
Na já consagrada concisão da prosa poética de Betty Milan, pontuada por insights cuja densidade exalta a força da palavra — matéria-prima da literatura e da psicanálise —, o ritmo é de batidas de tambor. É a arte da prática analítica que se revela aqui apta para abrir a estrada perdida do inconsciente na procura de se tornar o que de fato se é.
Quem não ficará surpreso ao avaliar o tato aguçado do Doutor Lacan, que exercendo plenamente seu famoso diktat de que a psicanálise deve ser reinventada por cada analista, conduzia a sessão por meio de intervenções minimalistas a preencher silêncios e sustentar perguntas?
Nessa singular travessia analítica, é a palavra que, ao ser encontrada, permite a descoberta da mulher, da mãe, da escritora e da analista. Mas não é outro senão o próprio fulcro do sujeito que emerge de todas elas: como não ouvir na nostalgia do país natal a presença constante do sujeito do inconsciente que, em sua divisão originária e em seu exílio — sem lugar, sem nome e sem imagem — encontra numa palavra que só existe em nossa língua — saudade — a expressão de seu afeto mais genuíno?
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* Texto do escritor e psicanalista Marco Antônio Coutinho, integrante da orelha de capa do livro Lacan ainda.
Lacan ainda – Marco Antônio Coutinho
Orelha de capa do livro