JOSÉ CELSO MARTINEZ CORREA *
Por onde começar?
Digo:
Eu li o livro como um de sacanagem procurando conhecer esse jogo de libidinizar a comédia dos intelectuais que a autora vive. A odalisca de Carnaval ou do Catumbi, mais conhecida no romance com o nome Siriema, foi tirando os véus numa hora em que precisaríamos inventar se não existisse uma analista assim de Arak! fui tirando os meus véus. Li em duas sentadas com meu cu Curioso pelo suspense do desvendamento. Me identificando desde que a vi em Paris sob a boina vermelha e segui, estes olhos de vagalume technicoloridos na tela de uma pele escura. Tivemos trajetória às vezes comum. Hoje encruzilhamos. Mas o ser não ser brasileiro, diante tanto dos papagaios brasileiros quanto dos doutores franceses, foi que nos solidarizou. Seres do ser ou não ser da batida do samba com breque, pactuem-se! Betti or not Tt iBe. Tt i i Bee! Em nós nasceu um gosto de viver, uma estética. Parece sempre que vamos parir linhas de montagens, políticas. Ambos somos amantes de santo do desejo, nos gostamos e nos cobiçamos. Gosto de sexohomem. Me lembro que em 65 em Paris Siriema, ou Ti Bee, cantava com admiração o professor Francês que fazia um elogio à homossexualidade. Na época isto que era “rara”, tanto me tocou que retoco agora nestas teclas. Nos encontramos na Paixão, por alguma coisa que este O Papagaio e o Doutor me dá: Saudades do Brasil que ainda Phodemos num futuro presente próximo. Toda esta libido passa por tanta coisa! Pela falta de berço, ou de origem na imigração. Ouço o sotaque em esperanto paulistez do Brazhilairio, da mais esquecida divindade cantora arcaica desta cidade: Isaurinha Garcia. Sinto paixão pela cultura clara do negro escravo, espelho escancarado de cultura internacionalista para nós vira-latas brancos do mundo emigrante. Nós somos o sonho da França, da Europa, país do Dionísios do Carnaval e do jogo de Futebol. Nossa sobrevivência está na razão direta da afirmação da realidade deste sonho gritando nos nossos corações por uma revolução mito-ilógica, que doutor Freud não podia imaginar nem no velho, nem no novo testamento. Doutor Jung talvez, mas ia se escandalizar vendo seus arquétipos receberem a poluição renovadora de Tão Paulo. Doutor Lacan verbabou, mas Betty sabe e faz saber: só ela, a Siriema, começou a levar o Doutor para o divã. Atravessou o bambolé do Equador, e daqui do trópico das Cabras foi de Joana D’Arc com esta missão libidinosa. Embaixadora do país grande do sonho para esta perestroca: a globosnostra tirada de véus. Dizer na França: “Doutor, a libido está lá, naquela doença de país pas serieux!”. Mas o doutor em vida nem sacou. Ele preferiu o papagaio louro do bico doularado de Madame. De vingança as macacas lacaninas comeram seu Totem e criaram uma psicanálise de São Joãozinho Trinta e auditórios de escutadoras, tão intensas como as macacas de Emilinha.
A ordem dessa loucura eu começo a encontrar na missão histórica da Siriema junto ao Doutor excomungado pela Sociedade de Psicanálise. Identifiquei com a minha excomunhão das fileiras da Igreja do Theatro e desejo um dia um auditório, um público assim de adoradores de Teatro como as amantes de santo de Doutor Lacan. Acho que a primeira corrente de heresia assumida, antropófagas demonstradoras do prazer descarado, do desejo de adorar. A grande Emilinha Borba era a bela Betti com seus olhos verdes de cabrocha Dalva de Oliveira rindo do frege da sala, do rebu psicanalítico. A loucura da “turca” libidinosa pairava narguileica querendo repor a palavra amante no dicionário, digerindo como quem tivesse no bucho toda Maria Antonia da USP comida, e sentisse o prazer de trazer o prazer das vísceras da cabeça pra brincar na comédia da inteligentzia tropical papagaia de doutor, como nós brincávamos na infância de médico. Para ter o direito, o lastro, o aval do pensar brasileiro, Siriema vai ao Doutor, com a imponência de Madame Sorbonne, banhada em alta costura no corpo mignon. O subtexto é a certeza cool que está escandalizando. Sua boina e a elegância cerimoniosa à la Jean Genet contracenam com a “seriedade” do papagaio. Os papagaios da varanda da Casa Grande cantam e vêm bater a cabeça à Madame no Harém dela, que foi fazer a psicanálise de nós todos com o Doutor. Nós de Tão Paulo, nós do Açu Brasil Grande, lemos cu-riosos este livro de sacanagem implícita da cabeça desta mulher que numa dança de sete véus vai tirando e fazendo seu strip-tease. A intrigante personagem vai sendo stripitada ao mesmo tempo que nos estripitiza. A França é outro país dos cristãos do Cedro e do Brasil Açu Grande? Crentes de natureza. Notre Dame de cada dia dá-me esta tua renda de Pedra. Minha avó turca ou italiana eram racistas, falavam mal dos brasileiros. E os brasileiros falavam que ela era “turca”, “carcamana”, “calabresa”. Maktub. Não vamos perpetuar a diáspora e nos atirar no divã do doutor. Você meu avô libanês, espanhol, africano, japonês, guarany, me negou a própria terra só exaltando um país imaginário, inexistente. Oh! Betti Boina pós-golpe de 64! Ser que se recusava a empunhar numa pata a foice e noutra o martelo, morava em palácio, comia servido à francesa, e mesmo adulta não prescindia da babá. Maria me dá isso, Maria me dá aquilo, sem mesmo dizer, por favor. E os filhos do gozo em superprodução de menores abandidados. Isso toca na cidade do Dinheiro ou da Morte. O Tão, tão São Paulo antes da conversão e depois. Será que só mudando de nome como Leningrado?! Moi non. A Francesa por mais doutora, coopera na copa. A Betti se exibe, se requebra, sai e não poupa olhares para quem brinque com ela, e a corte é ela que faz. Uma “turca” inviável no próprio país à procura de um outro onde seja reconhecida. Acho que é hora de ser aqui. Mais que o tempo de 50 minutos de uma sessão de psicanálise ou de peça de teatro. Ou você me analisa Betti ou faz alguma coisa. Dólares não tenho. Nem cruzados nem cruzeiros. Oh Lacan! Eu serei selvícola, cor de azeitona ou peludo ou narigudo como um turco, ou um índio, ou como um judeu, um negro ou mulato, sem conseguir o pacto com meus iguais de desiguais principalmente? Não se chega a um acorde? Um pacto? Querer é poder. Basta de querer só o pai, o outro que se oponha a você. O tal do phalo era uma pedra no caminho. Precisava exercitar-se para sustentar seu discurso contra os opositores, pedregulhos na boca para vencer os conterrâneos do outro sexo que não reconheciam nela sua lira, por não serem de cantar o amor e sim de esperar que ela cantasse. Ora cantemo-nos todos. Cante você tãobém Betti! Acho que macho que é macho é um Baudelaire se desmanchando. Betty Milan. Presidiária? Do Doutor? Da Grafinalha? Nunca! Liberte-se Siriema. O silêncio é do dollar? O risco é todo seu, nem eu nem ninguém pode dar nenhuma garantia. Mas acho que você vai emergir e existir nesta Cidade. Acho que a vontade de poder de Cacilda na Paulista paira em busca de um corpo com o pique da Arcaica cidade que não pode parar. Hoje a São Paulo que não pode parar parou! Está parada e anda feito barata pronta. E Betti entra na cena. Ah se tiver forças que contracenem com ela! É mais forte que Maluf e Ruth Escobar casados em Literatura e na vida, e com vantagem de ter levado doutor Lacan ao divã e sem tocar piano, nem ser atriz, escreve como quem muda os dormentes dos trilhos da ferrovia para novo curso do trem acordado. Já pensou? Melado de uva. Ela, eu, nós ignorando as religiões, resistindo às catequeses. Diziam: “Mexendo com feitiçaria, magia negra de negro?!”. Tenho saudades cada vez mais do país que podemos inventar. Só é Pátria a terra onde se está bem ou a que se inventa por que se está mal? Servir a dois Senhores? Duas línguas. Muitas, todas as do dragão poliglota lambedor de São Jorge! Traduzir, pensar numa e falar em outra. Ça, Id, Moi, e o sur Moi: o Seu-supereu, paulista super-ó-meu não, SuperEla! Betti vai traduza para nós, a canção do bebê árabe que vovó cantava. Pode ser a mesma que as mênades cantavam nos ninhos de cobra para Dionísos, Cosme e Damião. Arenga e sons guturais. “Halla Halla Halla, coitado do Abdalla. Sobe e desce o morro carregando sua mala e no fim do mês ninguém paga o Abdalla.” Traduzir é tocar. Fala Noel, que não tem tradução e a Betty quer chegar como você nas veias da cidade. O telefone quebrado de falar com o Brasil, na fila do terceiro mundo e dos exilados. A roupa, se tem que abrir mão da ginga, não me interessa, e, a ela também não. O ventre é dela e eu só espero que seja enxuto e sambanti. Betti renunciando a me e a se curar. Se recusando o dizer decorado o louro tim lacantino ou o plim plim platino. Dizer coroado. O Doutor tem uma ficha me classificando em não sei que nome feio Freudiano? Que palhaço! Pé-de-moleque se come e se mata todo dia na praça da Sé de si. Mas impedida até na análise de phalar de desejo, de sexo, desexa. O Doutor concorda em ouvir mas não escuta. Não quer a odalisca do Catumby, ou da Penha, quer a Dama: A Primeira Dama. Ma Dame. Madonna!!! Agora ou dançar o ventre livre, ou morrer no Açu Brasil. Pátria Cínica, Imoral? Moral sei que existe, mas no creio. Açu, ignorante de si, empregado, escravo, burguês sem iniciativa, não conduzido, nem conduzindo? Não sei, sei que pra terminar, só digo: Adeus Doutor. Tire os véus que os dela ela já começou a tirar. Ah ia me esquecendo, e você Papagaio?
São Paulo, 28 de agosto de 1991
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* “O Papagaio e o Doutor ou o strip-tease da doutora Betty Milan”, artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, a 7.9.1991, por José Celso Martinez Correa, diretor do Teatro Oficina, dramaturgo, ator e autor de Cacilda Becker.