Joãosinho Trinta

Joãosinho Trinta

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
foi publicado como “Joãosinho de cabeça feita”,
O Globo
, 9/02/1989

João Jorge Trinta, Galileo Galilei.

Eppure si muove, poderia ele ter dito, enfrentando com seus mendigos, ratos e urubus a moderna inquisição, desfazendo de quem faz pouco do samba e da sua força extraordinária de transfiguração.

Que se largue a minha fantasia e com ela possa o meu povo aqui reinar, seja ele povo, não sendo de loucos, mendigos e prostitutas. Do horror desta cena deve imperativamente surgir a maravilha. Sambando na lama… Se não tenho paetês, faço dos farrapos que tenho uma bandeira e ela doira se agitando incandecida no ar.

Sou biliardário sendo gari; dispondo, para varrer este lixo, do luxo todo da imaginação. Se entrego a cena à miséria, é da miséria em cena, imaginária, que se trata. A outra, quem produz são os ratos e os urubus, que por ela terão de se responsabilizar.

Sou moderno, sendo inteiramente medieval, fazendo apologia da praça pública e do riso popular, que não recusa o sério, mas, rejeitando o fanatismo, o didatismo e a ingenuidade, o purifica e completa. Outra é a minha religião, ambivalente e universal. A fantasia de que devem eles tirar a mão é também esta, que visto para pular e dançar e ser quem sou, sendo brasileiro e brincando o Carnaval.

Pudesse eu cotidianamente ser brasileiro, dizer que é amada a minha pátria e até dispensar a festa e a ressurreição! Dai-me o país e livrai-me desta cruz. Seja o paetê tão cotidiano quanto a aurora.

Sendo carnavalesco, sou pobre e rico, mendigo, gari e urubu. João-urubu para fazer da carniça a carne, a nova realidade através da paródia. Levanta meu povo, sambar e dizer, como eu, sim à tradição maior da Idade Média e não a essa nossa atual medievalização.

Só é triste o trópico dos mandantes. O meu, queiram eles ou não, é alegre. Alguém acaso ainda duvida? O trópico não nega, mulata. Oferece-te, oh, Mênade, a quem queira se alegrar, acariciar-te olhando os seios, as ancas e os quadris, pressentindo-te a boca e o mel.

O meu caminho é de quem comigo queira se juntar. Até porque ele é dos que antes e sem mim, por mera contingência, já estavam juntos, e eram nômades nesta terra onde somos todos quase náufragos. E é do choro essa boca que ora ri.

Comigo, pois, para o que der e vier, trilhando com Momo os caminhos dessa pátria que sendo boçal é bossal, medusa que pode ser musa, fazer com ela mais e ainda sonhar.

De tão poético, eu me tornei profético. Isso aconteceu e me escapou. Que cena é essa? Apocalipse do Brasil? A hora de um novo reino será?