Jean D’Ormesson: A morte
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra. Foi
publicado sob o título “Ormesson explica o mundo
aos extraterrestres”, Folha de S. Paulo, 26/03/1995
Grande Oficial da Legião de Honra e membro de tradicional família da nobreza togada francesa – isto é, do alto funcionalismo da monarquia –, Jean d’Ormesson nasceu em Paris em 1925 e formou-se em história, letras e filosofia na Escola Normal Superior. É um romancista e um ensaísta fecundo, além de exercer o jornalismo cultural na revista Diogène, de ciências humanas, e de ter atuado como diretor do jornal Le Figaro. A ele se deve a entrada, em 1980, da primeira mulher na Academia Francesa, Marguerite Yourcenar. Viveu no Rio de Janeiro, porque o pai foi embaixador da França no Brasil, e é membro da Academia Francesa desde 1973, ocupando a cadeira que anteriormente pertenceu a Jules Romains. O porteiro de pilatos, ou o segredo do judeu errante e Quase nada sobre quase tudo são títulos seus traduzidos para o português.
La Douane de mer é o nome do romance que Jean d’Ormesson lançou em 1994. Poderia ser traduzido por “A alfândega do mar”.
Nesse livro, o narrador começa contando a sua morte em Veneza. Ao se despedir da cidade, ele topa com um espírito vindo de outro planeta, de Urql, para fazer uma reportagem sobre a Terra. O espírito de Urql, cujo nome é A, não entende o que vê em nosso planeta, e o morto então se põe a explicá-lo. Durante três dias, os dois percorrem o espaço e o tempo para redigir o texto que depois será lido pelos habitantes de Urql. Três dias em que o narrador se entrega a várias considerações sobre o amor, a vida e a morte.
Para ouvir Jean d’Ormesson falar do seu livro, fui encontrá-lo na sua sala da Unesco, onde ele é presidente do Conselho Internacional de Filosofia e Ciências Humanas.
Betty Milan: O narrador de A alfândega do mar é um morto que fala. Por que o recurso ao morto para falar da Terra e dos homens?
Jean d’Ormesson: Porque eu queria mostrar o quanto este mundo, que nos é tão familiar, é na realidade espantoso. O mundo só nos parece natural porque estamos imersos nele. Se estivéssemos fora, ele nos pareceria inteiramente inverossímil.
BM: Mas por que um morto?
D’ORMESSON: Tinha pensado em explicar o nosso mundo a alguém que poderia se espantar com ele, a uma criança, por exemplo. Mas uma criança já sabe muito sobre o mundo, sabe o que significa ter dor, o que é o espaço, tem uma ideia do que é o tempo. Teria sido necessário tomar um recém-nascido, mas com um recém-nascido a gente quase não fala. Assim, resolvi explicar o mundo a alguém originário de outro lugar. Como não acredito nos fantasmas, nos redivivos, foi preciso que o autor morresse.
BM: Que ele se tornasse um espírito…
D’ORMESSON: Sim, e daí encontrasse outro espírito no além. Quando enfim tive essa ideia, eu me disse que o livro estava feito, só restava escrever.
BM: O livro é uma longa exposição. Nem o narrador e nem o espírito de Urql se transformam através dela. Por que ter feito um romance – que supõe uma transformação dos personagens –, e não um ensaio?
D’ORMESSON: Por duas razões. Uma que é, por assim dizer, alta e outra, baixa. A primeira é que, neste livro, a filosofia tem um lugar importante. O livro podia ser um tratado de metafísica, que eu não escrevi por achar que o romance me deixava mais livre, permitiria refletir sobre coisas que teriam parecido evidentes demais num tratado. A segunda razão é que eu desejava ser lido e estava certo de que teria mais leitores com um romance.
BM: O narrador morto não lamenta a própria morte, só lamenta ter se separado da sua companheira, de Maria. A separação dos amantes conta mais do que a morte. Trata-se da tradição do amor cortês, de Tristão e Isolda, Romeu e Julieta…
D’ORMESSON: “Romper com as coisas reais não é nada, mas o coração se quebra quando rompe com a lembrança.” O texto é de Chateaubriand. A única coisa que a gente pode lamentar quando morre é a separação. O que mais alguém como eu, que viveu tanto, pode lamentar? Amei muito a vida, o mundo, os livros, e também as coisas muito baixas. Gostei muito de carros, por exemplo.
BM: Como Picabia?
D’ORMESSON: É, e também gostei muito do dinheiro, como Dalí, porque o dinheiro dá liberdade. Gostei muito das viagens, que são uma coisa estúpida, gostei do esqui, do amor. Se alguém no entanto me perguntasse se eu acaso quero recomeçar, eu francamente hesitaria. A ideia de morrer me parece inteiramente aceitável, embora morrer deva ser muito chato. Não diria que quero morrer, mas aceito perfeitamente estar morto.
BM: Difícil é a passagem?
D’ORMESSON: Sim, ela é rude. O que é penoso na morte é o verbo ativo: morrer. Estar morto, tudo bem.
BM: O senhor é um especialista em Chateaubriand, que escreveu um dos mais belos textos sobre a morte, Memórias do além-túmulo.O que mudou desde então na relação com a morte?
D’ORMESSON: A gente agora vê os mortos pela televisão, porém a sociedade elimina a morte. Na época de Chateaubriand, as pessoas morriam nas suas casas; hoje, a gente morre no hospital. A morte não é mais familiar como era.
BM: Isso tem consequências sérias para os vivos. Vivemos como se fôssemos eternos e, consequentemente, aproveitamos menos. A consciência da morte é importante.
D’ORMESSON: A morte faz parte da vida. Se não morrêssemos, a vida seria terrível. Talvez ficássemos loucos.
BM: Talvez pensemos isso por sermos mortais.
D’ORMESSON: O Cristo, para punir alguém que lhe recusou um copo de água, disse: “Você não morrerá”. Nós não fomos feitos para viver eternamente.
BM: Se não me engano, Lacan dizia que o medo de não morrer é pior do que o medo de morrer.
D’ORMESSON: A propósito, Lacan contou a história de uma mulher que estava muito doente e, por sonhar todos os dias que não ia morrer, ficava desesperada.
BM: O que significa, para o senhor, pertencer à Academia Francesa?
D’ORMESSON: Pouca coisa. Você sabia que eu sou da Academia Brasileira de Letras?
BM: O quê?
D’ORMESSON: Sim, fui eleito para ocupar o lugar de Malraux. Há alguns estrangeiros na Academia e eu tive a honra de ser convidado. A Academia é uma instituição e, como instituição, eu a respeito. Ninguém, aliás, me forçou a ir para a Academia Francesa; eu quis ir. Assim como não detesto o dinheiro, não detesto as honrarias. Recebi a Legião de Honra e gostei. Fui nomeado diretor do jornal Le Figaro e também gostei. Gosto de estar na Academia, que obviamente tem muito pouca coisa a ver com a literatura.
BM: Foi o senhor que respondeu ao discurso de recepção de Marguerite Yourcenar na Academia. O que significou a entrada de Yourcenar?
D’ORMESSON: Não é suficiente dizer que eu respondi ao discurso de Yourcenar. Fui eu que a fiz entrar. Não era amigo de Yourcenar, mas conhecia seus livros e achava que era uma grande escritora. Hoje, não existem muitos grandes escritores na França. A literatura francesa teve três grandes períodos. O primeiro foi no século XVII: La Rochefoucauld, La Fontaine, Saint-Simon. O segundo, no século XIX: Vigny, Musset, Flaubert, Stendhal, Zola. O terceiro, entre as duas guerras: Aragon, Valéry, Giraudoux, Claudel. Achava que Yourcenar era uma grande escritora e era preciso fazê-la entrar. Você não imagina o que isso me custou, quase perdi a saúde. Diziam as coisas mais absurdas. Por exemplo, que eu era um oportunista, só fazia isso por causa da televisão etc. Depois, no fim, concordaram em receber Yourcenar. Isso porque não podiam deixar de fazê-lo. Hoje, as mulheres entram sem problema na Academia. Na verdade, eu quis muito que três pessoas entrassem – Yourcenar; Aragon, que não entrou porque era comunista; e Raymond Aron, a quem eu um dia disse que ele não entraria por várias razões, entre elas a de ser judeu. Tinha contra ele os antissemitas e também os judeus, que acham que já há judeus demais na Academia.
BM: Na sua resposta a Yourcenar, o senhor diz que “as tradições são feitas para que a lembrança seja o prefácio da esperança”. O que significa isso?
D’ORMESSON: A gente precisa usar a tradição para reformá-la. Sou um reformista e acredito que devemos nos apoiar na tradição para preparar o futuro.
BM: O senhor pertence à Academia Brasileira de Letras. E o Brasil, o senhor conhece?
D’ORMESSON: E como! Vivi três anos no Brasil, onde meu pai foi embaixador. Quando morei no Rio, em Ipanema, só havia o Country Club. O meu número de telefone era 25-2660.
BM: E o seu número de telefone agora vai sair no jornal. (Risos)