Hélène Cixous: A arte de Clarice Lispector
Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra e reúne dois artigos:
“Presença de Clarice Lispector”, Folha de S. Paulo,
28/11/1982, e “Editora francesa lançará toda a obra
de Clarice”, Folha de S. Paulo, 28/03/1993
Nascida em 1937 na cidade de Oran, Argélia, Hélène Cixous descobriu a França em 1955, dada a expulsão de seus pais da Argélia, devido à perseguição antissemita. Nesse ano, afirma ter adotado uma nacionalidade imaginária que é, aliás, a de vários outros escritores – a nacionalidade literária. Anglicista e especialista em Joyce, Hélène Cixous foi amiga de Jacques Lacan (1901-1981), assim como de Jacques Derrida (1930-2004). Teve participação decisiva na formação da Universidade de Vincennes, onde criou o Departamento de Estudos Femininos – que foi o primeiro da Europa –, e é considerada uma das mães da teoria feminista pós-estruturalista. Sua obra literária é considerável: poesia, romance, teatro, ensaio. Com o ensaio L’heure de Clarice Lispector (“A hora de Clarice Lispector”), divulgou a obra da escritora brasileira na França e, em 1989, recebeu do Brasil a Ordem do Cruzeiro do Sul por sua contribuição à difusão da nossa literatura.
Embora publicada pela editora Gallimard em 1950, Clarice Lispector permaneceu desconhecida na França até 1976. Hoje é muito lida. Foi redescoberta, por um lado, graças à Editions des Femmes, que readquiriu os direitos de publicação da obra, e, por outro, graças ao trabalho apaixonado de análise e divulgação feito por Hélène Cixous, autora do primeiro ensaio de fôlego publicado no exterior sobre a nossa escritora.
Para saber um pouco mais sobre Lispector, fui ouvir Hélène Cixous, que me deu uma entrevista no seu apartamento de Paris.
Betty Milan: Foi necessário muito tempo para que a maior escritora brasileira fosse descoberta na França. Na sua opinião, a que isso se deve?
Hélène Cixous: Acredito que ela tenha sido vítima de um recalque causado por fatores tradicionais na França, que não é muito receptiva aos textos estrangeiros. Ademais, acho que a obra de Lispector é monumental, de uma profundidade e de uma importância inusitadas, e o estado da literatura francesa é tal que o leitor médio, o da mídia, do jornalismo, é pouco capaz de segui-la. Ela escreve textos que têm uma mensagem cujo teor é quase filosófico e isto não é aceito na França, atualmente. Passamos por uma regressão extraordinária no mundo da literatura. Havia ainda, logo após a guerra, textos dessa qualidade intelectual. Agora, não há mais.
BM: Será que você poderia dizer o que torna Clarice Lispector tão difícil? O fato de ser um pensamento metafísico, o estilo, o quê?
CIXOUS: Tudo, eu acho. A começar pelo fato de ser uma mulher, de ter o handicap, a desvantagem que nós conhecemos. Em seguida, eu diria que é o fato de escrever um texto inteiramente marcado pelo que poderíamos chamar de “feminilidade libidinal”; é uma intensidade que a torna difícil para a maioria dos leitores, que são classicamente misóginos. Penso sobretudo em textos como Água viva, modelo de inscrição de uma feminilidade libidinal no nível formal. É um texto que não começa, que não termina, constituído de inúmeros começos;é uma enorme corrente de água, uma água viva, um texto que não tem limite, moldura, que pede uma leitura diferente. Uma leitura que seja uma aventura, como o próprio texto, em que é necessário mergulhar. Trata-se de um movimento que as pessoas não têm o hábito de fazer. Isso no nível formal. Mas no nível do conteúdo é a mesma coisa, aquilo de que Clarice fala é absolutamente subversivo em relação à mentalidade média, ela sempre se interessa, por exemplo, pelo que há de menor, de mínimo. O maior, para ela, é o menor, o mais extraordinário; o sobrenatural é o natural etc. Enfim, ela inverte permanentemente os valores e explicita o seu projeto no momento em que o realiza. Assim, se opõe completamente ao sistema de valores clássicos. A ordem, a organização à qual todo mundo se refere não existe. Se quisermos ler a história de alguém, não a encontramos. Aliás, ela sempre diz que não escreve histórias, e sim fatos simplesmente.
BM: É problemático falar de economia libidinal da feminilidade. Há quem diga que não existe uma escrita feminina. Seria possível explicar o que é a economia libidinal da feminilidade?
CIXOUS: Não me refiro a uma oposição masculino-feminino, que reenviaria a homem e mulher. Mas, por razões de época, mantenho com aspas adjetivos como “masculino” e “feminino” para caracterizar as economias libidinais que podemos fazer surgir, observar e que são diferentes. Vemos essas economias manifestarem modos de ser, quer na vida cotidiana, quer nas produções discursivas em geral.
BM: Como situar a diferença no texto?
CIXOUS: Nem sempre é claro. Mas, se tomarmos, por exemplo, a questão dos gêneros na literatura, há uma economia libidinal literária que produz o gênero do romance, quer dizer, algo construído, organizado, apropriado, delimitado e que obedece a certas regras, tem um começo, um meio e um fim. Eu diria que são caixinhas e que a economia masculina se compraz em enquadrar, reter, ordenar um espaço. Em contrapartida, encontramos, numa outra economia, textos que não são caixinhas, que estão fora da moldura, não são passíveis de ser enquadrados, estão sempre em aberto, e, contrariamente àquilo que se deixa enquadrar, existem num movimento, numa continuidade. Ocorre que são sobretudo as mulheres que produzem esse tipo de texto, ao mesmo tempo jubilatório e angustiante, como tudo o que recomeça incessantemente.
BM: Como a fruição feminina?
CIXOUS: Exatamente. E é verdade que isso cria um problema, tanto para aqueles que escrevem como para aqueles que leem. A continuidade coloca o problema da sua interrupção. São problemas vitais e inteiramente literários, técnicos, são problemas de que Clarice Lispector trata com uma acuidade inacreditável. Quando há uma continuidade, quando há um fluxo e uma potência vital que o sustenta, como em Água viva,então, não vemos por que parar de repente. O que faz parar é uma perda de fôlego num determinado momento ou uma preocupação com o outro, e daí o texto para. O admirável é que ela para arbitrariamente. Não para porque construiu um modelo arquitetado, que seria geométrico ou matemático, equilibrado como as dissertações que nos ensinaram a fazer. O texto segue o ritmo do corpo. Bem, agora eu paro, diz ela. Diz e faz. Eu paro, eu recupero o fôlego, tomo uma xícara de chá e recomeço. É algo que está o mais perto possível do corpo, que o mima, quando a literatura em princípio recalca o corpo.
BM: Onde situaria Joyce nisso tudo? Sei que estamos aqui para falar de Clarice Lispector, mas, como Joyce a interessou tanto, gostaria de saber onde o situaria.
CIXOUS: Ele me interessou na medida em que ousou tomar certas liberdades com a língua. Porém, o tipo de mensagem que ele faz passar não me agrada. Num certo nível, ele é totalmente reacionário. É um homem clássico, o lugar da mulher na obra dele é bem pouco invejável. Verdade que ele analisou as estruturas familiares de modo admirável, mas, no fundo, só fez isso. Questionou e reproduziu ao infinito o drama familiar de uma maneira engraçada, magnífica mesmo, só que nada descobriu de novo. Foi no nível da língua que ele desenvolveu seu trabalho – aliás, no limite da língua. Joyce ousou aplicar descobertas que já existiam e que diziam respeito ao significante, à sua riqueza, à sua polissemia etc., como, por exemplo, as descobertas de Mallarmé. Não ignorava as tradições europeias de trabalho com o significante, que ademais existiam na Inglaterra renascentista. Shakespeare trabalhava com o significante. Mas antes de Joyce ninguém havia feito desse trabalho a regra geral do texto. Ele generalizou o trabalho de “tormento do significante”. Os efeitos disso são fabulosos, é importante para quem escreve.
BM: O tormento de Clarice é de outra ordem…
CIXOUS: Não tortura o significante, pelo contrário. Posso me enganar, porque o meu conhecimento do português é insuficiente, mas me parece que ela trabalha a frase, o parágrafo, tem uma relação com a pesquisa formal, a sintaxe, a elipse etc. etc. Não é diretamente no nível da palavra que ela opera. O que ela faz, e é isso que é absolutamente admirável, é filosofia poética ou poesia filosófica. Enfim, algo que eu nunca vi em outro lugar. E só há uma pessoa no mundo que produziu textos tão densos, foi Kafka. Só que ele inscreveu tudo no nível da alegoria, ele alegoriza o real para chegar a produzir efeitos de sentido, faz dele uma fábula. Para Lispector, o real é, em si mesmo, portador do sentido mais fino. Só os filósofos fizeram o que Clarice faz, mas sem a liberdade que ela, como poeta, tem. Às vezes eu me dizia que ela parecia Heidegger. Há, por exemplo, um trabalho sobre “a coisa” que tem a força, a potência, a precisão do discurso filosófico heideggeriano. Ela ousa casar, ousa celebrar o casamento da escrita mais leve, quase oral, com o pensamento mais profundo. E é absolutamente excepcional.
BM: Escrita oral?
CIXOUS: Sim, porque tenho a sensação de que ela tem uma maneira direta de escrever que tem a ver com o relato. E ela recupera na escrita, o que é muito raro, muito feminino, a economia oral. No limite, poder-se-ia dizer que, para chegar a escrever como se fala, é preciso levar a escrita ao ápice. Mas eu digo isso porque um dia vi na televisão um filme sobre a Bahia e havia gente do povo que tinha uma fala de uma grande beleza e eu me disse que, no fundo, Clarice Lispector tinha fontes locais extraordinárias. Eram mulheres que, na fala mais simples, tocavam no coração da vida… É épico, é a epopeia popular contemporânea, coisa que nós não temos na Europa. Por tudo isso, é impossível ler Clarice Lispector rapidamente. Ela pede um verdadeiro trabalho de leitura e as pessoas em geral não leem assim, sobretudo quando se trata de literatura. Se se tratar de filosofia ou de textos psicanalíticos, dizem a si mesmos que é preciso prestar atenção, refletir. Porém, quando leem literatura, não se detêm. E com Clarice Lispector é preciso não ter pressa.
BM: Como foi que a descobriu?
CIXOUS: A Editions des Femmes quis fazer o público redescobrir Clarice Lispector. Ela havia sido publicada na França, mas sem eco algum. Chegou mesmo a desaparecer, e a Gallimard, que detinha os direitos, não mostrava nenhuma intenção de continuar a publicação de livros considerados sem interesse para a sua política comercial. Um dia, Antoinette Fouque, da Editions des Femmes, me falou do projeto de comprar os direitos autorais da Gallimard. Depois, Regina de Oliveira Machado, que se tornou tradutora de Clarice Lispector, me mostrou algumas páginas de Lispector em que ela estava trabalhando. Posteriormente, li numa antologia de textos de mulheres brasileiras publicada pela Editions des Femmes um pequeno fragmento de Água viva e fiquei abismada, achei aquilo sublime. Não acreditei no milagre e me disse que não ia acreditar, sem mais nem menos, que existia uma obra com a qualidade daquelas páginas. Depois, saiu A paixão segundo GH, pela Editions des Femmes, e foi decisivo. Admiti que era para mim o maior escritor contemporâneo. Para uma mulher que escreve, Clarice Lispector é uma iniciadora, abriu um território que eu sequer imaginava adentrar um dia. Para trabalhar sobre a feminilidade e a escrita, eu sempre me valia de textos de homens nos quais a feminilidade aparecia.
BM: Quais?
CIXOUS: Textos de todos os tipos e sempre em edições bilíngues. Kleist, os românticos alemães em geral. Trabalhava muito com Rilke, com a poesia, textos ingleses, Shakespeare… Enfim, eu estava sempre retrabalhando textos de homens, o que politicamente não era prático. Era incômodo não encontrar exemplos de economia aventureira em textos de mulheres, e eu andava um pouco triste. Clarice me salvou e me deu um universo.
BM: Você acha que o interesse por ela na França é devido a uma leitura reveladora?
CIXOUS: Acredito que contribuí para isso. Desde 1978, trabalho ininterruptamente com os textos de Clarice, falo deles em todo lugar… Há dezenas de teses que se fazem no Canadá depois que fui fazer conferências sobre Clarice, que simplesmente não existia lá. É a mesma coisa nos Estados Unidos e na França. Não para mais. É incrível! O texto de Clarice responde a uma necessidade e, por outro lado, também era preciso que houvesse um mediador.
BM: É frequentemente assim?
CIXOUS: Talvez. Eu diria que é a questão do amor e da transferência. Se começo a dizer com toda a minha força que amo o que ela faz, isso produz efeitos desse tipo. Penso numa cadeia transferencial – e que é maciçamente feminina. São as mulheres que a leem; os homens, menos. Fiz os homens que eu conhecia lerem Lispector. Eles são bem menos abertos do que a maioria das mulheres. Isso é curioso, porque eu não considero que Clarice se enderece especificamente às mulheres.
BM: Você poderia falar dos problemas de tradução que o texto da Clarice traz?
CIXOUS: Inicialmente, compreendi a língua de Clarice a partir do latim, quando o francês está muito longe do latim. Há um trabalho da subjetividade inteiramente diferente, porque o sujeito pode estar implícito no verbo, o que não acontece no francês. Há mil elementos da língua portuguesa no Brasil que favorecem o projeto filosófico de Clarice Lispector. Na tradução, somos obrigados a acrescentar o sujeito, porque o francês não tolera uma frase em que o sujeito esteja ausente. A força do português do Brasil me fascina. Quando penso que no francês não temos gerúndio! É uma verdadeira loucura. Temos que encompridar as frases por causa disso. Clarice sabia o que o português do Brasil permite, como eu sei o que o francês interdita, porque tenho origem linguística diferente. Na minha infância, falava alemão e depois, inglês. O trabalho que Clarice fez é um trabalho total, uma obra em que não falta nada. Há mesmo elementos romanescos, embora os livros dela não sejam propriamente romances. Há todos os gêneros, mas o gênero não é um fim em si, é antes um resquício de uma forma antiga.
BM: Um resquício de uma forma antiga?
CIXOUS: Sim. Se tomarmos A maçã no escuro, podemos acreditar que se trata de um romance. Aparentemente, é um romance. No limite, poderíamos dizer que é um romance à maneira americana, de Faulkner, por exemplo. E não é isso. Em A maçã no escuro, o elemento romanesco é apenas um dos elementos do texto. Cada página é, em si mesma, uma espécie de meditação filosófica.
ADENDO
Dos muitos autores brasileiros traduzidos na França, só Jorge Amado e Clarice Lispector têm um público que não se limita aos estudantes de literatura. Os demais foram editados e são apenas “uma presença”, como dizem os agentes literários e os outros que intermedeiam a edição. A literatura brasileira chega mal na França, pois os tradutores em geral desconhecem a nossa língua oral e numerosos são os erros de interpretação que disso resultam.
O fato é que Lispector fez a travessia, ainda que tenha tido a sua primeira obra publicada em 1950 (Perto do coração selvagem, Plon) e só começasse a ser efetivamente lida em 1976 (A paixão segundo GH, Editions des Femmes). Mas por que somente então?
Os anos 1970 são, na França, os de maior impacto do pensamento de Lacan, cujo seminário, além dos psicanalistas, congrega os lógicos, os linguistas, os antropólogos e os semiólogos, entre outros. Aquele pensamento é então decisivo e é razoável supor que, em 1976, Clarice Lispector conquista um público também por ter ideias em que os ouvintes e os leitores de Lacan se reconheciam.
Lispector afirma, por exemplo, que não sabe redigir ou vestir uma ideia com palavras, que, para escrever, o seu material básico é a palavra (A hora da estrela). Diz, sobretudo, que “o que vem à tona já vem com ou através de palavras ou não existe” (Para não esquecer). Lacan, nos seus seminários, fala para se opor à aversão pela palavra no meio psicanalítico, para fazer ouvir que ela é o fundamento da cura e é necessário escutá-la. Num caso e no outro, a ação depende inteiramente da palavra.
Lispector faz explicitamente a defesa do não-saber: “A menina não perguntava por que era sempre castigada, mas nem tudo se precisa saber e não-saber fazia parte importante de sua vida” (A hora da estrela). Lacan igualmente valoriza o não-saber e incita o analista a operar com ele, pondo em prática uma “douta ignorância”, para que o analisando possa vir a saber algo de novo sobre si mesmo.
Lispector não se importa com escrever histórias, diz explicitamente que só escreve fatos. Lacan, na sua prática, não focaliza e não interpreta a história que o analisando conta e só este pode interpretar; ele a corta, a interrompe na palavra através da qual a verdade do sujeito pode ser revelada. Num caso e noutro não é a narração, mas a revelação que interessa.
As coincidências entre a escritora e o analista são várias, e não foi por acaso que ela efetivamente entrou na França quando uma editora, que também é analista, Antoinette Fouque, a descobriu.
Lispector se impôs através da Editions des Femmes, dirigida por Antoinette Fouque, que, em 1987, nos deu uma entrevista da qual segue um fragmento.
BM: Foi a Editions des Femmes que deu a Clarice a importância que ela tem…
Antoinette Fouque: Sim. Depois que a editamos, ela foi traduzida por editoras americanas, inglesas, italianas. Trabalhamos muito para que Clarice fosse conhecida no mundo inteiro. Levei-a inclusive para o Japão. O primeiro livro foi editado em 1976, A paixão segundo GH. Depois, nós continuamos a publicar os livros regularmente e vamos publicar a obra inteira.
BM: Como foi que vocês a descobriram?
FOUQUE: Fui ao Brasil em 1975 e ouvi falar muito dela. Quis encontrá-la, mas não houve como. Um tempo depois, ela passou na livraria, pouco antes de morrer, e eu não estava. Na verdade, a descoberta dessa autora foi um acaso no sentido dos surrealistas, ou seja, algo de improvável e absolutamente necessário. Sim, algo devia acontecer entre ela e nós e, por isso, várias pessoas começaram a me falar de Clarice. Publicamos um livro de entrevistas chamado As brasileiras e o depoimento dela me pareceu excepcional. Soube que A paixão segundo GH esperava edição e publiquei. Clarice também aconteceu na nossa editora por causa da minha paixão pelo Brasil.
BM: A tiragem é grande?
FOUQUE: A cada edição, de 3 mil a 5 mil exemplares. Não é uma Régine Deforges. Não vende como A bicicleta azul, mas Clarice tem os seus leitores. Hélène Cixous, que é uma das nossas autoras, faz conferências sobre ela na França e no mundo inteiro.
BM: Há muitos anos, ouvi Hélène Cixous falar com paixão de Clarice, dizer que só a obra de Kafka tinha uma densidade equivalente e ainda que ela é “o maior escritor contemporâneo”.
FOUQUE: Juntamente com Laços de família,também saiu pela Editions des Femmes um livro de Cixous que se chama A hora de Clarice Lispector e que muito contribuiu para tornar Clarice conhecida. Na verdade, ela nos é muito cara.
BM: O que foi que ela lhes deu?
FOUQUE: Não é fácil dizer. Me deu tanto quanto Rilke. Sou psicanalista, além de editora, e ela me deu o que o analista chega a intuir, mas não ouve escutando os pacientes: o delírio psicótico sublimado, transformado por uma extraordinária alquimia, pela elaboração de uma poética rigorosa que também é da ordem da pesquisa científica… Acredito que Clarice tenha feito análise. Amigos meus me disseram que sim. Se eu a tivesse conhecido, faria o que Lou Andreas-Salomé fez com Rilke – aconselhou-o a não se analisar; até porque Rilke não queria. Queria deixar de sofrer, porém temia que o analista, com os demônios, suprimisse os anjos, coisa que obviamente não ia acontecer. Lou Salomé poderia ter contado a Rilke que ela frequentemente tratava os pacientes lendo as Elegias de Duíno ou os Sonetos a Orfeu. Noutros termos, o poeta é o mais sublime dos terapeutas. Ora, Clarice é poeta. Portanto, ela me dá o que a loucura não me deixa ouvir e me dá isso como uma obra de arte… Da lama do inconsciente, Clarice Lispector fez um diamante. Não existe, aliás, em toda a literatura psicanalítica, uma análise tão rigorosa de um caso de loucura feminina quanto a que ela faz em Laços de família.