Hector Bianciotti: A Autoficção

Hector Bianciotti: A Autoficção

Betty Milan
Este texto integra o livro A força da palavra.
Foi publicado com o título “Hector Bianciotti lança a autoficção”,
Folha de S. Paulo
, 19/12/1993

Hector Bianciotti é uma das grandes figuras do migrante cultural moderno na França. Filho de camponeses italianos originários do Piemonte, nasceu em 1930 na Argentina. Deixou seu país em 1955, indo a Roma, Madrid e, enfim, Paris, onde se estabeleceu no ano de 1961. Adquiriu a nacionalidade francesa em 1981. Publicou vários romances em espanhol – todos traduzidos para o francês. Foi jornalista literário, colaborando por 15 anos com a revista Le Nouvel Observateur e depois com o jornal Le Monde. Com Le traité des saisons (“O tratado das estações”), ganhou o Prêmio Médicis de Literatura Estrangeira de 1977 e com L’amour n’est pas aimé (“O amor não é amado”), o Prêmio de Melhor Livro Estrangeiro, em 1982 – ano em que, a despeito dos seus esforços para preservar a língua materna, passou ao francês definitivamente. Com Sans la miséricorde du Christ (“Sem a misericórdia do Cristo”), seu primeiro romance francês, ganhou o Prêmio Femina de 1985. Depois da edição de O lento passo do amor, publicado também no Brasil, foi eleito para a Academia Francesa em 1996.

“Quem conta um conto, aumenta um ponto”, diz o adágio popular, dando a entender que não há como narrar sem inventar. Não seria precisamente para inventar que o contador se põe a narrar? para transfigurar com as suas palavras a história e se realizar como sujeito?

Quem conta escrevendo a própria vida o faz também no anseio de se transformar através da reconstrução do passado. Bastaria isso para situar a autobiografia no campo da ficção, em que o biógrafo se exerce por mais que ele insista no “testemunho verídico” –  ideia, aliás, encobridora da sua fantasia.

Isso não poderia ter escapado aos analistas, mas foi um literato que, por valorizar a imaginação, pôs os pontos nos is, negando a possibilidade da autobiografia e criando um gênero literário: o da autoficção. Trata-se de Hector Bianciotti que, em 1992, publicou O que a noite conta ao dia, uma autoficção na qual rememora a vida nos pampas: extensão infinita onde o cavaleiro galopa sem saber como é o além; o cotidiano na Argentina de Perón, onde todos eram delatores e suspeitos; e uma trajetória no exílio – a de um latino-americano saído “de mais baixo ainda do que o povo” e só tendo como recurso o talento para se impor como escritor.

Bianciotti concedeu a entrevista no seu apartamento parisiense, nas proximidades do Marais. Ele chegava da Bélgica e me surpreendeu dizendo só ter feito duas viagens na vida, uma da Argentina para a França e a outra da língua materna para a francesa.

Betty Milan: A propósito de seu último livro, você diz que se trata de uma autoficção, e não de uma autobiografia. Por quê?
Hector Bianciotti: A memória e a imaginação trabalham juntas. Nós não nos lembramos do fato em si, mas da última vez que nos lembramos dele. A autobiografia é simplesmente impossível; daí o termo “autoficção”.

BM: Termo, aliás, introduzido por você na literatura.
BIANCIOTTI: Sim.

BM: Qual a diferença entre a autoficção e o romance?
BIANCIOTTI: A autoficção é um romance baseado nos atos e experiências que formaram nosso ser e constituem nossa vida. Já no romance, a gente pode, por exemplo, inventar uma personagem a partir de duas ou três pessoas conhecidas e até mesmo de uma fotografia.

BM: A autoficção é ou não um modo de expressão narcisista?
BIANCIOTTI: Quando a gente se aprofunda verdadeiramente na própria história, acaba tocando em pontos comuns a todos os seres humanos, que têm as mesmas angústias, padecem da mesma nostalgia do paraíso.

BM: Você seguiu algum plano na elaboração do livro?
BIANCIOTTI: Escrevi as minhas experiências de modo cronológico e depois refleti sobre o que estava escrito, porque a gente é obrigada a fazer uma escolha crítica.

BM: Como se pontuasse a sua própria história.
BIANCIOTTI: Sim, é de uma pontuação que se trata na autoficção.

BM: Por que o livro se chama O que a noite conta ao dia? Qual a razão do título?
BIANCIOTTI: A noite é o passado, o que está soterrado. O dia é o presente. Encontrei isso, aliás, num caderno onde escrevia palavras que poderiam servir para o título, que, finalmente, surgiu. Há um poema de Nietzsche chamado A noite fala ao dia.

BM: No primeiro capítulo do seu livro, você diz que todo ser humano nasce bem antes de ter nascido, que há, por assim dizer, um “desenho anterior”. O que é isso?
BIANCIOTTI: Quando digo que a gente nasce bem antes do nascimento, quero dizer que não herdamos só os traços físicos, a cor dos olhos, da pele etc., mas também os sonhos, que não são necessariamente os da geração que nos precede. Às vezes, são sonhos de gerações mais antigas.

BM: Em que a história dos seus ancestrais determinou a sua?
BIANCIOTTI: Conforme está no livro, nasci na província de Córdoba, nos pampas argentinos, um lugar tão aberto que dá a impressão de que não se pode sair, precisamente por não haver obstáculo algum. O horizonte é longe quando a gente cavalga nos pampas. Nós éramos sete irmãos. Quando eu era pequeno, eles me chamavam de Mosca Branca, porque eu sempre dizia que era preciso partir, deixar a terra. Isso vinha do fato de que o meu pai tinha uma grande nostalgia da cultura europeia. No lugar onde eu nasci, não havia escola, só um professor que vinha em casa. Nós tínhamos um rádio, meu pai assinava um jornal importante e minha irmã, uma revista feminina mensal, onde havia fotos das pessoas da alta sociedade, cujos modos eram inteiramente diversos dos nossos. Aos 12 anos fui mandado por meu pai para um colégio de franciscanos em Córdoba e foi assim que eu deixei o campo. Depois, entrei para o seminário e daí fui para o serviço militar. Quando me dispensaram, me mudei para Buenos Aires, onde fiquei quatro anos, sempre com a ideia de partir. Trabalhava no teatro e um dia os meus amigos organizaram um espetáculo para me comprar uma passagem para a Europa.

BM: Quer dizer que foi graças aos amigos que você chegou ao “mundo dos livros”, o mundo em que você depois se realizou como escritor?
BIANCIOTTI: Sim.

BM: Você diz, no seu livro, que os argentinos são europeus no exílio, como Borges também dizia. Isso não acontece com os brasileiros, mesmo quando descendem de europeus. O que explica o exílio dos argentinos na Argentina?
BIANCIOTTI: O exílio vem do fato de que a metade do país descende de imigrantes italianos que chegaram entre l880 e l900. A cultura italiana era marginalizada pelas classes dominantes, pelos descendentes dos conquistadores. Os que possuíam a terra e eram francófilos.

BM: Depois de ter sido um europeu no exílio, você se tornou um estrangeiro na França. E hoje é um escritor de língua francesa. Gostaria de saber como foi que você passou de uma língua para outra e se essa passagem foi a condição para que você saísse do exílio.
BIANCIOTTI: Conto no meu livro que já era francófilo, mesmo antes de conhecer a revista Sur, de Victoria Ocampo. Desde os 12 anos, gostava muito de Rubem Darío, que mudou toda a poesia espanhola e cujas principais fontes eram Verlaine e os simbolistas. Através de Darío, entrei em contato com a literatura francesa. Aos 15 anos, comecei a estudar sistematicamente os poetas e procurava sempre ler no original em francês. Quando cheguei em Paris, fui contratado pela Gallimard e, portanto, precisava redigir comentários sobre os livros. Quando o meu segundo romance, escrito em espanhol, foi publicado na França, o diretor do jornal La Quinzaine Littéraire me pediu um artigo. Escrevi um, ele pediu outro, e daí a revista Le Nouvel Observateur me chamou. Trabalhei quatorze anos na Le Nouvel Observateur e daí escrevi o meu primeiro romance direto em francês.

BM: Você não escreve mais em espanhol?
BIANCIOTTI: Não. Me sinto mais à vontade em francês do que em espanhol. Quando estava na Espanha, antes de vir para a França, trabalhei como ator. Para que o meu trabalho dispensasse a dublagem e não saísse caro, eu falava o espanhol castiço e me dei conta de que o corpo todo mudava. Minha postura era outra, tinha um gesto heroico, que não tem nada a ver comigo. O francês é uma língua que valoriza a intimidade. Quando a gente diz o pássaro em francês, l’oiseau, é como se o pássaro estivesse no ninho. Já quando a gente diz el pájaro, o pássaro está voando.

BM: Em síntese, o que é a literatura para você?
BIANCIOTTI: Talvez seja a arte de não chamar as coisas pelo seu nome, de utilizar a linguagem de modo evocativo e de se deixar levar pelas palavras.