HAKIRA OSAKABE *
Embora não delimitável formalmente, vejo uma distância muito grande entre o ensaio e a ficção ensaística e ensaios ficcionais. O que importa é que, tanto do ponto de vista de suas condições de produção como de circulação, ambos os gêneros supõem jogos de fatores muito distintos. Naquilo que é particularmente central, eu diria que o jogo ficcional se assenta sobre um desdobramento do sujeito de tal forma que desse desdobramento resulte a inequívoca invenção de uma experiência, a qual inclui, por sua vez, para se formular enquanto tal, a instituição de um discurso que lhe dê existência. Não há, portanto, em rigor, ficção, se não houver um discurso primordial que corporifique e adense a experiência criada. Não se tratando de uma invenção pura de um determinado significado, também não se trata da criação de uma logística exclusivamente normal.
Pois bem, o romance que Betty Milan acaba de publicar pela Editora Siciliano, O Papagaio e o Doutor, constitui uma demonstração clara de que sua autora tenta, com ele, sair do campo do ensaio e adentrar, de forma determinada, o campo da ficção. Não se trata de tarefa fácil, considerando-se a inata vocação da autora para o gênero ensaístico, vocação que manifestou desde a publicação de seu extraordinário Jogo do esconderijo. Além do mais, ao tentar esse salto, Betty Milan tem necessariamente de libertar-se de Jacques Lacan, a quem sintomaticamente é dedicado o livro. Por que essa libertação? Tudo tem a ver com o modo discursivo anterior ou ensaístico da autora. Ligada por laços não apenas afetivos e analíticos à figura de seu mestre francês, Betty foi (e é) teoricamente ligada à grande figura, importantíssima na história da Psicanálise das últimas décadas. Essa ligação teórica comandou em Betty Milan a configuração de um discurso muito particular em que se juntaram a analisanda, a psicanalista e a ensaísta ao mesmo tempo.
À maneira de Lacan (mas sem imitá-lo, é claro), incursionou por várias formas de especulação, sobre vários objetos e de um modo sempre muito sagaz, embora nem sempre o tom, o ritmo ou a melodia de seu texto tenham se afinado ao longo de sua já bastante frutuosa carreira. Nem de tudo eu gostei, mas é impossível ficar-se indiferente à sensibilidade e ao senso de combate dessa interessante mulher.
Quando soube do iminente lançamento de seu livro, pensei comigo: Será que a Betty conseguiu nesse texto aquilo que quase atingiu com OSexophuro? Dificuldades muito pessoais atrasaram a leitura completa do livro, que só recentemente acabei por fazer. E, para variar, o livro de Betty Milan impôs-me, de antemão, um problema: como lê-lo? em que vertente situá-lo? Isto, embora soubesse também de antemão tratar-se de um romance. Sem me impor uma postura muito clara, fiz o que fiz: li-o. É de fato um romance. É de fato uma ficção. O contra-argumento que se poderia opor a essa constatação residiria no fato de que há muito de autobiográfico na trama do romance: como a autora, a personagem principal, descendente de árabes, também sai de um país subdesenvolvido e vai à cata da sua verdade: aquela que espera encontrar na figura do analista.
No entanto, em que pese esse autobiografismo do texto, o romance de Betty Milan transcende os limites e o horizonte da individualidade para impor-se como uma realidade constituída para além do pessoal. Ao leitor tanto faz se se trata de fulano ou de cicrano, o que o envolve é a experiência inovadora de um discurso declaradamente poético com que a autora densifica um vivido já remoto e rarefeito e onde se presentifica muito mais do que um passado analítico, o favorecimento de uma experiência estética. Isso se espalha pelo livro todo através da constituição de figuras como Salomé ou da ironia sofrida que perpassa as considerações da personagem central em relação ao seu suposto país. Assim, do mesmo modo com que um dia chegou a personagem decididamente ao consultório e saltou o obstáculo do divã, Betty, ao escrever esse livro, salta da sua cadeira de analista ou de observatório de ensaísta e entra no terreno do poético. Se se compara sua linguagem de hoje com a de seus ensaios, nitidamente se verá que ela ultrapassou o umbral da dissimulação. Oculta na forma ensaística, estava uma ficcionista e poeta envergonhada. Tal como o exercício secreto do divã deu-lhe a possibilidade de um diferente retorno ao país, o exercício solitário da escrita conferiu-lhe essa passagem que, feliz ou não, Betty Milan conseguiu realizar. Embora desigual no seu todo, a poesia do romance salva-o de suas eventuais quedas.
O início cambiante vai dando lugar a uma linguagem autônoma, atingindo momentos surpreendentes de realização poética que acaba conferindo ao substrato vivencial e ensaístico a autonomia de uma boa ficção.
Não por acaso, a questão central do romance tem a ver com a identidade cultural da personagem Seriema em relação ao seu país, Açu. A questão, posta na forma inquisidora e sofrida da busca do centro, é formulada em termos de um deslocamento espacial e cultural. A ida à França é a possibilidade do encontro com Açu, cujo cerne se nega a se desvendar.
A solução é conquistá-lo pelo percurso de uma memória ancestral, daí os antepassados, o Oriente Médio, a imigração. A analogia com a problemática teórica imposta pela oposição entre ensaio e ficção é forte neste ponto. O ser de fato açuano identifica-se diretamente com o salto para o poético. Sem ele, a distância e o deslocamento serão inevitáveis. E tanto um quanto outro supõem a experiência do desgarramento, a sensação da vertigem que advém da “soltura”, do desvencilhamento das amarras de uma razão oriculadora e a libertação dessa espécie de húmus que fecunda pelo ventre a inocência de um novo nascimento. Para a cultura e para a poesia.
_______________________________
* “Betty Milan estuda Lacan em ficção”, artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, a 1.2.1992, por Hakira Osakabe, professor de Teoria Literária da Unicamp e da Georgetown University, em Washington.