Guimarães Rosa, o homem da boiada
Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país,
saiu originalmente como “O poder de ir fundo, até o fim”,
Folha de S. Paulo, 21/08/1981
Guimarães Rosa não era de dar entrevista. Aliás, por que o faria? Se o seu ofício era ser escritor, o por dizer estava no texto ou não existia. Seja como for, numa de suas raras entrevistas — a Günter Lorenz, crítico e tradutor de Guimarães para o alemão —, disse que não precisava inventar estórias, elas iam ao seu encontro, forçando-o a escrever. Era a infância que retornava e se impunha, eram as estórias do sertão, dos vaqueiros que levavam as boiadas para embarcar na cidade de Cordisburgo e, à espera do trem, lá se dividiam entre o armazém de Florduardo Pinto Rosa, o pai, e a pensão de Nhá Tina, ambos próximos da estação.
Não buscava, era encontrado. Mas, em 1952, Guimarães Rosa sai viajar dez dias pelo sertão, acompanhando uma boiada e tomando notas. O repórter da revista O Cruzeiro, que alcançou a tropa nos últimos dias da jornada, fala dele como “o homem da boiada”, chapéu de aba larga, meio gordo e não muito loquaz, caderninho preso no pescoço por um barbante, anotando de vez em quando uma palavra ou frase, ouvindo mais do que falava, mudando de parceiro a cada etapa do caminho, para tirar-lhe o máximo de prosa, perguntando pelo nome de algum passarinho que cantasse ou das árvores na estrada. O homem da boiada não estava ali para falar, e, sim, para ouvir; suscitava o causo e não hesitava em perguntar, exibindo sua ignorância. Também não estava entre os boiadeiros e, como os outros, para tanger a boiada — sua maneira de agir e finalidade eram diversas, contrárias a toda expectativa. Nenhuma vergonha em não saber e nenhuma finalidade evidente, que o decisivo não era a travessia, mas o que no meio dela ocorria.
Rosa não tangia, pertencia à boiada, aos dizeres que a levavam, aos outros todos que ele deixava ser em si. Não precisava inventar histórias, mas nomear o passarinho ou a árvore, cujo nome desconhecia, sujeitando-se à estranheza alheia, correndo o risco de ser tratado de louco para curar-se do estranho mal de não saber.
Isso porque, à diferença dos outros, sabia que, para ser quem era, urgia dizer “não”ao que de todos nós se espera, uma imagem estável, uma marca ou definição. Urgia, para tornar-se escritor, não ser isto ou aquilo, liberar-se desta amarra, correr o risco de se perder nas veredas da língua para reencontrar talvez a infância, produzir de novo e universalizar o sertão.
Guimarães Rosa, como Fernando Pessoa, sabia que, não sendo árvore, não tinha raiz, e que a pátria é a língua.
Não se expôs ao fogo cruzado das balas; porém, se fez através do perigo. Daí, possivelmente, o destino de uma estrofe do conhecido repentista Bindoia, reproduzida em Ave palavra, o livro póstumo de Rosa, que substitui o termo “dinheiro” por “perigo”:
Meu cavalo é minhas pernas
Meu arreio é meu assento
Meu capote é minha cama
Meu perigo é meu sustento.Bindoia
Fernando Pessoa dizia que navegar é preciso, viver, não. E o homem da boiada, ouvindo-o, tirou da sua errância Riobaldo e Diadorim, imergindo assim na vida que inventou, sua vida verdadeira.