‘Goodbye Doctor’: Betty Milan e Barbara Riethe entregam detalhes da peça de teatro que estreia em Nova York
Em entrevista à Vogue Brasil, as brasileiras responsáveis pela montagem falam sobre o processo e a história por trás da produção que entra em cartaz nesta quinta-feira na Big Apple
Milena Otta
24 novembro 2024
Líbano. Brasil. França. Esses países acolhem a narrativa de Goodbye Doctor, peça escrita por Betty Milan, dirigida por Debora Balardini e produzida por Barbara Riethe — que também interpreta a protagonista. Depois de ter entrado para o cinema em uma adaptação de Richard Ledes, agora a produção chega aos palcos do teatro Jeffrey and Paula Gural em Nova York.
Goodbye Doctor retrata a história de uma jovem brasileira, Seriema, que após dois abortos espontâneos e a possível perda do marido, viaja para Paris a fim de fazer uma análise com Jacques Lacan e descobrir porque não consegue ser mãe.
Antes de se debruçar na escrita, Betty Milan se formou em medicina pela USP e se especializou em psicanálise na França, onde se tornou assistente de Jacques Lacan no Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII e teve a possibilidade de fazer análise com o profissional entre 1973 e 1978. No livro Lacan Ainda, ela oferece um testemunho raro e íntimo desse processo com o Doutor.
Betty conta ainda que foi por causa desse livro, que a peça agora chega ao teatro. “A editora Bloomsbury publicou o testemunho da minha análise (‘Lacan Ainda‘), editado no Brasil pela Companhia das Letras e na França pela editora Érès”, relata. “Como o testemunho não é grande, a Bloomsbury resolveu publicar juntamente a peça, que estreia no teatro graças ao empenho da companhia de teatro Psykout! e da atriz Barbara Riethe”, completa a escritora e psicanalista paulista.
De ascendência libanesa, Betty, já adulta, teve a oportunidade de entrevistar todos os seus familiares para saber sobre a história da imigração. Com isso, teve material para escrever O Papagaio e o Doutor, o romance inspirado em sua análise com Lacan. “Foi neste livro que Seriema, a personagem da peça Goodbye Doctor, nasceu. Seriema é, portanto, personagem de romance e de teatro“, conta a psicanalista. A protagonista é filha de um pai que desejava um filho homem e, para atender a esse desejo imperativo, suprimiu sua feminilidade, inclusive o desejo de ser mãe.
Ao ser questionada sobre o processo de desenvolvimento da liberdade feminina de Seriema, Barbara Riethe, produtora e protagonista, comenta: “como um choque elétrico! De milhões de volts”. Este processo conta com a ajuda da personagem Maria — interpretada por Dianne Dixon —, que foi sua babá, mas nesta encenação a escolha coletiva foi de não a engessá-la nesta posição. Maria é uma mulher negra, conectada com sua feminilidade, com a força da terra e espiritualidade, com raízes africanas e brasileiras, com a força da mistura. “Seriema inicia a peça como seu pai a criou, vestida como um homem. Às vezes, escapa uma feminilidade reprimida, na voz, num gesto, mas é logo contida”, explica. “Ao longo da peça, ela se permite, pela primeira vez, usar uma saia, depois um vestido, sentir o desconforto, depois se permitir gostar, ou não. Usar uma joia, um batom. Ter o direito de sentir seu corpo como é, de se escutar e explorar como ela quer expressar o seu ‘eu’ feminino, tão reprimido, é a parte da jornada da peça. O direito da escolha de mudar é sua grande conquista” completa a atriz.
É claro que todo trabalho traz as mais diferentes adversidades consigo, e este não seria diferente. Para Barbara, o maior desafio dessa personagem foi dar corpo e voz humana à Seriema: “Uma coisa são as personagens no papel escrito, o embate filosófico de ideias na dramaturgia. O trabalho do ator é colocar essa ideia em ‘carne humana’, com um coração que bate”, reflete. “A personagem, no texto escrito por Betty, carrega contradições e diferentes faces que, na leitura, parecem impossíveis de suportar (e são!), por isso ela procura fazer análise, para ter a chance de se ‘re-conhecer'”, emenda.
Seriema é filha de descendentes de imigrantes libaneses no Brasil, que negam as origens para caber na norma do país que os acolheu. O conflito de línguas e culturas, ainda mais indo para Paris, faz dela uma imigrante. “É como se ela estivesse sempre implodindo. Construir o corpo de Seriema, sua voz e gestos, permitindo essa tensão constante entre desejo e repressão, masculino e feminino, e como isso se transforma ao longo da peça, com certeza foi o maior desafio e ainda é! A cada performance descubro algo novo! ”, diz Barbara.
A peça mistura realidade com ficção, trazendo a história da imigração como ponto de partida. “Embora eu tenha escrito o romance há três décadas e a peça há duas, o tema é absolutamente atual. São muitos os países que lidam com a imigração ilegal. As fronteiras estão se fechando cada vez mais e o drama dos imigrantes na terra e no mar é tenebroso. Isso posto, eu preciso acrescentar que a minha peça não é atual só pelo tema, mas pelo modo como foi feita. Para chegar a ela, escrevi inúmeras versões e trabalhei com Robert Mckee, o autor de Story, que veio para o Brasil a convite da Globo. Espero que, depois dos Estados Unidos, a peça seja montada no Brasil”, conclui Betty.
Serviço:
Teatro Jeffrey and Paula Gural, A.R.T New York Theaters, em Nova York | De 24.10 a 03.11 @psykouttheatre