Gilberto Freyre, o jovem ancestral

Gilberto Freyre, o jovem ancestral

Betty Milan
Este texto, do livro Isso é o país, foi antes publicado
com o mesmo título”, Folha de S. Paulo, 18/07/1988

Páscoa de 1988; o Recife, como queria Gilberto Freyre. Devo tratá-lo de doutor? Sim, como ele gostava, mas ainda pela douta ignorância de que se servia para entender melhor o interlocutor. Do doutor Gilberto Freyre, portanto, eu fui saber se era válido privilegiar, na interpretação da cultura brasileira, o brincar. Seria ou não uma boa pista?

Só tendo como apresentação o motivo exposto no breve telefonema de São Paulo, ele me recebeu. À diferença dos outros doutores, era acessível, além de pontual. Talvez até porque fosse monarquista. “A pontualidade é a cortesia dos reis”, afirmava Luís XIV.

Apesar do calor, que a uma sulina parecia excessivo, vestia-se de terno e me esperava em pé. Que eu sentasse, disse, para só depois se acomodar atrás de uma escrivaninha abarrotada de livros e ao lado de uma secretária que ali ficaria examinando a correspondência. Agora me cabia falar, e eu temia o julgamento. Venci o medo me apresentando pela profissão, à maneira de uma career woman. Só daí pude chegar dizendo que, após vários anos passados fora do país, eu me interessava pela questão da identidade nacional, sumariamente, pela nossa diferença.

— O seu drama foi o meu —, comentou ele, encorajando-me a prosseguir.

— De quem mais nos veio o brincar, foi do índio ou do negro?

— O ameríndio, de origem asiática, como o euro-português, não é um filho do trópico. Já o negro não chegou aqui num meio estranho. Mesmo do ponto de vista biológico, estava predisposto a ele. O negro transpira pelo corpo inteiro, é um indivíduo feliz pelo seu modo de respirar o trópico. Deparando-se com o índio e o português, deve ter se sentido o verdadeiro homem brasileiro. Sua capacidade de brincar era superior à dos outros —, respondeu Gilberto Freyre, deixando que a sociologia brotasse do corpo, saísse pelos poros.

— Qual a parte do português no brincar?—, quis eu então saber.

— Fala-se mais na sua tristeza, na saudade, na mágoa, saudade enquanto mágoa.

— Sim, mas, por outro lado, em Casa-grande & senzala, o senhor insiste no cristianismo lírico, muito pouco ortodoxo do português, que não excluía a dança na catequese e nem o namoro nas igrejas.

— Aí, é bem verdade que ele brincou.

— O senhor acha que em nós, brasileiros, prevalece a tristeza ou o desejo de brincar?

— Acredito que este comece a se sobrepor. Já não se pode dar ao Brasil um caráter de europeidade inteiramente ibérica, houve uma grande influência francesa. O francês brinca ou não?

— Sim, com a palavra.

— Acrobaticamente até —, comentou ele, acrescentando que o brasileiro da classe burguesa brincou muito com a cocotte e já me perguntando se este brincar não deveria ser levado em conta, introduzindo a questão do sexo, em que ele ousou fundar a sua sociologia, devorando a psicanálise e trilhando brasileiramente um caminho fecundo para os outros sociólogos.

O nosso maior doutor não tinha vergonha das vergonhas, pois sabia que nas partes baixas a ciência mais encontraria a sua verdade. Naquele dia, Gilberto Freyre me fez rir e também por isso eu hoje me lembro dele com saudade.

A propósito da francesa, disse-lhe que a libertinagem do século XVIII era certamente equivalente ao nosso sexo desculpabilizado do brincar. Ouvi-o daí considerar a importância da boneca francesa na nossa formação, o fascínio pela ariana.

A conversa estava solta, e eu me referi à apologia da Cinderela Negra pelo Carnaval, à mulata Piná como Cinderela no enredo da Beija-Flor, que, brincando, subverte o imaginário europeu. A negritude de novo se impôs como tema, e ele me surpreendeu, indagando se Mario de Andrade, por não ter assumido a sua condição, teria sido um angustiado. Só respondi que Macunaíma era obra dele.

— Sim, aí houve uma transferência, foi mesmo uma obra-prima de transferência —, repetiu o psicanalista Gilberto Freyre.

Por fim, afirmando que no Brasil a vitória da miscigenação é avalassadora, sugeriu que eu integrasse este fato à pesquisa. Aqui, eu agradeci e nós nos levantamos — ele para tirar da estante um pequeno livro seu, escrever uma dedicatória e me oferecer. Tratava-se do texto de uma conferência sobre Camões, a mim dedicado “pelas afinidades de pensar e de sentir”, opúsculo onde depois li que o poeta luso teria sorvido de bocas femininas a sua poesia e me fez pensar no estilo do sociólogo. Não é que ele frequentemente escrevia como só nós, mulheres brasileiras, falamos? Gilberto Freyre nos amava.

A história sobre a negra Isabel, que ele tanto contava, não era folclórica. O lapso cometido no Congresso Brasileiro de Psicanálise (1985), no Rio de Janeiro, onde o encontrei pela segunda e última vez, é a prova. Gilberto Freyre falava sobre o sabor da comida de Isabel e, de repente, disse que ela o converteu “à província”, em vez de dizer “cozinha brasileira”. Isabel deu-lhe o rumo da existência misturando aos reis e rainhas das histórias figuras nativas que surgiam do alto de uma pitangueira, ensinando-o insensivelmente a reinventar a Europa através do Brasil e, assim, amar a terra onde com ela tomava banhos de rio e aprendia a sonhar. Talvez por isso tenha declarado que o pai foi um grande mestre de latim, a mãe de francês e Isabel quem mais o ensinou. Seja como for, daí se pode deduzir o lugar que, na hierarquia dos saberes, ocupava a universidade para Gilberto Freyre.

Teria sido por isso que a leitura de Casa-grande & senzala, na década de 1960, era censurada na Universidade de São Paulo, onde ouvíamos falar dele como reacionário? Possivelmente, ainda que tenha sido convidado pelo presidente Castello Branco a ser o ministro da Cultura de seu governo e tenha recusado o convite. O que conta é não ter sido ministro de governo algum, embora pudesse ser de todos; é ter servido às causas que são contrárias ao Estado. Daí a modernidade do homem que foi cortejado por todos os presidentes, mas a nenhum atendeu, por saber que nada é mais antinegro e mais reacionário, no Brasil, do que o Estado.

Gilberto Freyre ousou viver à contracorrente, amando os solares cor-de-rosa, as árvores e as cachoeiras, onde também tomava banho sem roupa e sem medo das más línguas ou dos fotógrafos indiscretos. Ao reitor da Universidade de Brasília, que interditou a circulação do número do Correio do Livro em que o sociólogo aparecia nu, Freyre teria certamente dito que deixasse estar na praça o jornal.

Viver o corpo foi o imperativo deste sábio que, em Modos de homem & modas de mulher, escreveu sobre o valor do traseiro e as possibilidades várias das ancas brasileiras, nobilitando temas desconsiderados pelo saber oficial e incitando a pensar mais nas nossas coisas — o Brasil, que, lá do céu, na constelação negra de Isabel, ele continuará a presidir.