Freud, o feminino e o feminismo
Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
foi publicado sob igual título na Folha de S. Paulo, 22 e 23/10/1980
“Bendito seja Deus nosso Senhor e o Senhor
de todos os mundos porque Ele não me fez mulher”,
dizem os judeus nas suas preces matinais“Bendito seja o Senhor porque Ele me criou
segundo a sua vontade”,
dizem resignadamente as esposas dos judeus“Como a igreja está submetida ao Cristo,
assim esteja submetida a mulher ao seu marido.”
São Paulo“Não autorizo nenhuma mulher a ensinar ou ter autoridade;
ela deve permanecer em silêncio.”
São Paulo
Seneca Falls (EUA), 1848, Primeira Convenção dos Direitos Femininos. As mulheres insistem no direito de ter a mesma educação que os homens recebiam, de falar em público, de ter prioridades, trabalhar e controlar os próprios ganhos.
O feminismo, através da sua luta, tornou obsoletas aquelas reivindicações. Bastaria isso para justificá-lo.
Entretanto, é preciso reconhecer que hoje, apesar da importância de certas de suas palavras de ordem, o feminismo frequentemente soa como um discurso vazio. Por quê?
Recorro ao livro A mística feminina, de Betty Friedan, para me orientar. Depois de ter caracterizado a mística feminina, o discurso ideológico que sustentava a imagem da mulher como um ser passivo, satisfeito num mundo de bebês, sexo semanal e cozinha, Betty Friedan nos diz que a mulher americana “necessitava urgentemente de uma nova imagem para auxiliá-lo a encontrar sua identidade”, recomendando no último capítulo que a dona-de-casa fosse submetida a um curso concentrado de seis semanas, “uma espécie de terapia intelectual de choque”. Ou seja, contra a violência da imagem criticada, a do choque para impor outra imagem, modelar a identidade feminina segundo esta, perpetuar assim a dependência. Ora, como diz Simone de Beauvior, se a mulher é oprimida, é que ela não reivindica ser sujeito, ter uma palavra própria. Imagem do que deve ser é que nunca faltou — e, neste sentido, o feminismo é uma faca de dois gumes. Propiciando a fala das mulheres significa por um lado um avanço, mas promovendo uma imagem na qual ela deva se reconhecer anula a possibilidade de uma palavra própria.
Os efeitos negativos da política traçada em A mística feminina (1963) logo se tornariam evidentes. A própria Betty Friedan, em 1979, afirmava: “Parece-me que só podemos confiar nas feministas ou em quaisquer outros ‘istas’ quando falam a partir da verdade pessoal em toda a sua complexidade. A imagem da libertação feminina em oposição à família foi incentivada por mulheres que reagiam violentamente contra suas famílias e identidades. Sua cólera era real, mas sua retórica negava outros elementos da sua verdade pessoal”.
Já aqui uma primeira resposta para o porquê do vazio no discurso feminista. A retórica negava a subjetividade de cada uma, e o movimento pagou por isso.
Este fato em parte se explica através da recusa de Freud pelo feminismo, sobretudo o americano, cuja repercussão em outros países é significativa. Por isto, interessa agora reexaminar a crítica do feminismo a Freud, verificar se ela é legítima.
Ainda uma vez, valho-me de A mística feminina. Ali, a crítica se ancora por um lado no moralismo de Freud, por outro nas distorções propagandísticas de sua teoria e nos desvios teóricos dos discípulos.
No primeiro caso, partindo do pressuposto de que a vida e a teoria de Freud são indissociáveis, usa fatos de sua vida ou opiniões dele sobre a emancipação feminina. Assim, por exemplo, a queixa de Freud sobre a falta de docilidade de sua esposa Marta, a tentativa de moldá-la à sua vontade ou as seguintes opiniões expressas numa carta: “Acredito que toda reforma na Lei e na educação não resistiria diante do fato de que bem antes da idade em que um homem pode vir a ter uma posição na sociedade, a natureza determinou o destino da mulher através da beleza, do charme e da doçura. A Lei e os costumes têm muito o que devolver à mulher daquilo que dela tiraram, mas a posição da mulher certamente será o que ela é: na adolescência uma graça adorada e na maturidade uma esposa amada”.
O que dizer diante disso? A vida e as opiniões de Freud não são a prova do antifeminismo dele?
Ainda que a resposta seja positiva, ela não justifica a recusa da psicanálise pelo feminismo, pois é preciso considerar que, se a vida de Freud foi o ponto de partida da sua teoria, esta se constituía subvertendo a moral que regia a vida de Freud e a dos seus contemporâneos. O moralismo de Freud não resistia às descobertas que a contrapelo ele fazia. Valorizar os preconceitos em que ele insistia, e não as barreiras que superava, além de ser arbitrário, é uma injustiça. Quanto às opiniões, há que levá-las a sério, mas fazer isto é analisá-las no interior do discurso freudiano, perguntar se pertencem ou não ao campo da psicanálise. Pois bem, se recorrermos às suas Conferências introdutórias, veremos que a resposta só pode ser negativa: “Em conformidade com sua natureza peculiar, a psicanálise não tenta descrever o que uma mulher é — esta seria uma tarefa que ela poderia dificilmente desempenhar —, mas começa inquirindo de que forma ela passa a sê-lo, como uma mulher se desenvolve a partir de uma disposição bissexual”. Ou seja, as opiniões de Freud sobre o que uma mulher é não são do domínio da psicanálise, e julgar esta à luz daquelas é forçar a mão.
Decididamente, o moralismo de Freud não é argumento. Mas a crítica não se faz só a partir dele. Assim, Betty Friedan nos diz ser uma ideia nascida de Freud — “inveja do pênis” — que aprisionou numa armadilha as mulheres americanas. Ora, como reconhecer, no uso que a mística feminina faz da ideia do pênis, uma ideia freudiana? Segundo a mística feminina, as feministas eram vítimas da ideia do pênis, mulheres que queriam ser homens, negavam sua verdadeira natureza que só realiza através da passividade sexual e da maternidade. Aí, a inveja do pênis é sinônimo do desejo de tê-lo, e nada tem a ver com o conceito freudiano que diz respeito ao poder da imagem do falo na sociedade humana.
Quando Betty Friedan não se baseia nas distorções da mística feminina, utiliza textos de psicanalistas que Freud só poderia desautorizar. É o caso, por exemplo, do texto O sexo perdido, da psicanalista Marynia Farnham e do sociólogo Ferdinand Lundberg, texto citado até a náusea nas revistas e nos cursos de casamento. Equacionando o feminismo e a inveja do pênis, os autores afirmavam categoricamente: “O feminismo, apesar da validade do seu programa político e grande parte… do seu programa social, era no cerne uma doença profunda… A direção dominante do treinamento e desenvolvimento femininos hoje desencoraja precisamente aqueles traços necessários para atingir o prazer sexual: receptividade e passividade, um desejo de aceitar a dependência sem medo ou ressentimento, com uma profunda convicção e prontidão para o fim último da vida sexual — a fecundação”.
Nada mais antifreudiano. Se passividade e atividade são efetivamente formas através das quais o prazer se realiza, não é de modo algum no interior desta oposição que se a elabora a teoria psicanalítica sobre a sexualidade, mas sim em torno da ideia de pulsão, para dissociar o prazer sexual da reprodução. Assim, em a Moral sexual civilizada, Freud diz: “Originalmente no homem a pulsão sexual não serve de modo algum aos propósitos da reprodução, mas tem como finalidade a obtenção de formas particulares de prazer”. Isto significa que a dita “pulsão genital” não é de modo algum natural, o que aliás levou Jacques Lacan a afirmar num dos seus seminários: “… não houvesse esse diabo de simbolismo a empurrá-lo para que afinal de contas ele ejacule, e que aquilo sirva para alguma coisa, há muito tempo que já não existiriam seres falantes”.
Em suma, a polêmica feminismo x psicanálise precisa ser revista. Mesmo porque, embora Freud tenha dito explicitamente que sua teoria não tinha como dizer o que uma mulher é, o feminismo americano, partindo dos desvios da teoria, viu nela resposta para a questão.
Mas, como aliás aponta a feminista inglesa Juliet Mitchel, este uso da psicanálise, sendo alheio ao seu campo e método, é um abuso. A questão freudiana é a de saber como uma mulher se torna mulher, e se Freud sublinha que a psicanálise não pode dizer o que ela é, é que a teoria psicanalítica se faz a partir do discurso e não há nele nenhum significante que seja específico de um ou de outro sexo, indique o que cada sexo é nele mesmo.
Por isso, quando o feminismo pergunta o que é uma mulher, ou bem encontra respostas negativas ou bem lança palavras de ordem onde se trata de dizer o que ela deve ser, situação em que substitui a violência de uma imagem pela de uma outra, uma mística por outra, forma de exercer poder sobre as mulheres, e não de as liberar. Dizer o que uma mulher não é, para que possa não mais se reconhecer nos limites a ela impostos, é necessário, mas dizer o que deve ser é restringir-lhe a liberdade de dizer o que quer.
Ou seja, se a questão freudiana supõe o discurso feminino, que ela assim proporciona, o feminismo corre o risco de produzir o silêncio, senão a repetição de um discurso onde a própria palavra se esvazia.
Há um impasse a superar e um ponto necessário de chegada, no qual se tratará de poder dizer, dizer enquanto uma, o que se quer, para curiosamente, ainda uma vez, encontrar Freud: “A grande questão que nunca foi respondida e a que eu não pude responder, apesar dos meus trinta anos de pesquisa sobre a alma feminina, é o que uma mulher quer”.