François Weyergans: A crise da literatura

François Weyergans: A crise da literatura

Betty Milan
Este texto integra A força da palavra.
Foi publicado como “A escrita em crise vai ao cinema”,
Folha de S. Paulo
, 10/01/1993

Escritor, cineasta e crítico de cinema, François Weyergans nasceu em 1941 na Bélgica, de pai belga e mãe francesa. Formou-se no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (conhecido pela sigla francesa IDHEC) e realizou nove filmes antes de optar definitivamente pela escrita. Seu primeiro romance, Le pitre (“O farsante”), editado em 1973, foi um grande sucesso. Nele, Weyergans faz o seu herói, Eric, dialogar com um célebre psicanalista francês, o Grande Vizir. Por La démence du boxeur (“A demência do boxeador”), seu nono romance, ele recebeu em 1992 o cobiçado Prêmio Renaudot. Em 2005, veio-lhe o Prêmio Goncourt, por Trois jours chez ma mère (“Três dias na casa de minha mãe”).

“À medida que a educação se ramifica e o analfabetismo desaparece, vemos diminuir o interesse das massas modernas pela leitura. Sob o rótulo mentiroso de cultura popular, governo, televisão e multinacionais oferecem às massas espetáculos e distrações que são os equivalentes modernos do circo de Roma ou do hipódromo de Bizâncio”. Com essas palavras, abordando o mal-estar na literatura contemporânea, Octavio Paz inaugura a Feira do Livro de Frankfurt de 1993.

Um mês depois, no começo de novembro, o jornal Le Monde publica uma entrevista em que Philip Roth, autor de Complexo de Portnoy, diz que os Estados Unidos foram invadidos pelo jargão Disney e só têm I5 mil leitores. Simultaneamente, em artigo na revista L’Infini, Milan Kundera se pergunta se o romance, a grande arte europeia, não estará há algum tempo condenado a desaparecer.

Crise da literatura, mas ainda do cinema de arte, que resiste com dificuldade à indústria do espetáculo. De tal crise François Weyergans faz um dos temas do seu romance A demência do boxeador, cujo personagem, Melquior Marmont, grande produtor de cinema e amigo das estrelas mitológicas de Hollywood, evoca o Cidadão Kane.

Magnata da época heroica de Hollywood, Melquior Marmont adquire, aos 82 anos, o castelo da sua infância, Saint Léonard, no interior da França. Aí, nessa residência devastada pelas colônias de férias, que a utilizaram sucessivamente, rememora o seu passado, para realizar um filme cujo título seria A demência do boxeador, se o projeto tivesse se realizado. Assistindo ao filme da própria vida, Melquior, que foi um dos grandes da arte emblemática do nosso tempo, vai sendo tomado pela idade e acaba à espera da morte, a única que o pode livrar do confronto aterrador consigo mesmo.

Para saber desse romance, do qual o Fitzgerald de O último magnata certamente teria gostado, e da crise da literatura e do cinema, fui ouvir François Weyergans.
A entrevista estava marcada para 18h15 no hotel onde os escritores da Editora Grasset costumam receber a imprensa. Trata-se de um hotelzinho particularmente charmoso da rue des Saint Pères, com um bar na entrada que dá para um pátio interno, atrás do qual há um pequeno salão, em geral usado para as entrevistas, tendo só três cadeiras de veludo vermelho ao redor de uma mesa.

Por eu estar adiantada, a recepcionista me sugere ficar esperando no bar. O garçom, então, me surprende dizendo que o Sr. Weyergans saiu e logo voltaria, mas para encontrar alguém da televisão francesa, e não a mim. Algum tempo depois, desmentindo o garçom, quem chega é um fotógrafo, que me tranquiliza. Trata-se apenas de tirar duas ou três fotos do escritor.

Weyergans é pontual. Às 18h15, entra vestido de preto, casaco longo e echarpe no pescoço. Cumprimenta e, voltando-se para o fotógrafo, diz: “Você devia era tirar fotos dela”. (Risos) E eu, me dizendo que Weyergans é galante, passo com os dois do bar para o salão, onde a sessão de fotos dura pouco e o garçom logo aparece trazendo o kir que eu havia pedido e uma taça de champagne para Weyergans, a quem eu primeiro leio um fragmento traduzido de A demência do boxeador, para fazê-lo ouvir o texto no “português do Brasil”.

À leitura seguiu-se uma pequena conversa, o prólogo da entrevista.

François Weyergans: Percebi, escutando, que um texto traduzido pertence a quem o traduziu. Antigamente, eu tinha amigos brasileiros. Como eles voltaram ao Brasil, não os encontro mais. Quando você leu, me dei conta de que era exatamente a mesma música.

Betty Milan: Você teve uma reação idêntica à de Lacan quando levei a ele a tradução que eu tinha feito do Seminário I – Os escritos técnicos de Freud. Lacan olhou, só me disse que não entendia absolutamente nada do que estava escrito e me devolveu, sem mais, o manuscrito. Na época, eu não compreendi, mas era a única reação possível.
WEYERGANS: Sim, porque o sujeito é despossuído e, ao mesmo tempo, não é desagradável, porque a gente sente que a coisa circula. O efeito é e não é estranho, porque, quando você leu, eu ouvi um som que é o da língua portuguesa do Brasil e que pertence à minha juventude, ao meu passado, o que, aliás, tem tudo a ver com o tema do meu livro.

BM: Vamos aos seus livros. No seu primeiro romance, O farsante, um dos personagens, chamado o Grande Vizir, foi inspirado em Jacques Lacan. Há frases que só podem ter sido ditas por ele, o estilo é inconfundível. O herói, um tal de Eric, se queixa, nas sessões, de que é só encontrar uma mulher para ficar maravilhado e que ele depois não sabe como agir, o que fazer com a dita cuja. Trata-se de uma sátira. A despeito do humor, A demência do boxeador é um romance trágico, e se o herói, Melquior, não dissesse explicitamente que tem pena dos que se dizem satisfeitos com a vida que levaram, eu não perceberia a relação entre o primeiro livro e este. Em O farsante, o narrador parecia fazer associações livremente. Em A demência do boxeador, ele é supercontrolado. Você poderia falar um pouco sobre isso?
WEYERGANS: Há vinte anos de diferença entre os dois livros, e eu, felizmente, mudei. Se eu fosse o mesmo, seria horrível. Verdade que o narrador é mais controlado em A demência do boxeador. Trata-se, aliás, de uma observação arguta. O narrador é controlado porque a gente aprende isso. Um romancista, como um esgrimista, deve saber fechar. Em O farsante, há algo de muito aberto, de ingênuo, e essa ingenuidade hoje já não me interessa. Comecei a escrever O farsante com 27 anos e A demência do boxeador com 48; nesse meio tempo, aprendi que a ingenuidade não tem o valor que eu atribuía a ela. Além disso, existem os problemas técnicos. A gente descobre que, para fazer um personagem de fato existir, é melhor que ele seja mais misterioso, menos iluminado. Há muita luz no meu primeiro romance, é como uma casa em que a gente tivesse acendido todas as luzes. Já em A demência do boxeador, utilizei uma luz indireta. Quando penso em O farsante, penso em algo muito iluminado.

BM: Excessivamente?
WEYERGANS: Não. Excessivamente, não. Isso implicaria um juízo de valor.

BM: Você não julga a sua obra?
WEYERGANS: Nem a minha obra e nem coisa alguma. Aprendi a tirar todos os verbos, todos os adjetivos que servem para julgar as coisas. Trata-se de um trabalho difícil. Mas eu penso muito nisso e também na diferença que existe entre os meus livros.

BM: Apesar da diferença entre os dois romances, há um ponto em comum. O narrador é onisciente, tanto sabe o que se passa entre o doutor (o Grande Vizir) e o analisando (Eric) quanto o que passa pela cabeça de Melquior, quando este rememora sozinho no castelo a própria existência.
WEYERGANS: Olha, não se trata apenas de uma história de narrador onisciente. O autor procura desaparecer, estar o menos possível no livro, mas, apesar de uma narrativa aparentemente fria, faz acreditar que é o próprio personagem que fala. Acho isso mais bem-feito em A demência do boxeador. O tempo todo utilizo a terceira pessoa, me refiro a Melquior usando “ele”, mas o narrador está próximo do personagem, de modo que o leitor também fica próximo. Depois se distancia, mas durante a leitura é como se Melquior fosse um dos seus amigos.

BM: Acredito mesmo que seja um achado. A gente se identifica tanto com esse personagem que está na terceira pessoa quanto se identificaria com um outro que dissesse eu. Mas ao mesmo tempo isso é problemático. O seu narrador sabe o que a ninguém é dado saber, porque tanto na análise quanto no castelo em que Melquior está sozinho não existe testemunha. Há algo de ilógico. Eu gostaria que você falasse sobre isso.
WEYERGANS: O fato de ser ilógico significa que estou no bom caminho, porque tudo o que me interessa é ilógico.

BM: É ilógico, mas verossímil.
WEYERGANS: Só é ilógico numa primeira instância da lógica. Na verdade, há duas coisas que eu lamento: não ser um lógico e não ser um economista, porque acredito que, com o conhecimento da lógica e da economia, eu comprenderia bem melhor o que se passa à minha volta.

BM: Gostaria de poder explicar o seu achado. Seria preciso saber por que é lógico apesar das aparências. Acho que se trata de uma questão pertinente.
WEYERGANS: Sim, eu escrevi o último livro na expectativa de que o futuro leitor se identificasse com Melquior Marmont, mas não se tomasse por ele. Quando o narrador utiliza a terceira pessoa, o “ele”,o leitor não é obrigado a se identificar. Se eu utilizasse o “eu” em vez do “ele”, haveria nisso algo de masturbatório. Na verdade, antes de começar o romance, passei três ou quatro meses sem saber se seria “ele” ou “eu”.

BM: A demência do boxeador dá a entender que o cinema, como arte, está morrendo. Recentemente, Philip Roth deu uma entrevista ao jornal Le Monde dizendo que não há mais do que 15 mil leitores nos Estados Unidos e que em breve haverá mais escritores do que leitores. O que você diria da situação na França?
WEYERGANS: Será que os números de Philip Roth são corretos? Quando fui aos Estados Unidos, fiquei surpreso com o interesse das pessoas pelos livros. Além disso, há muitos universitários, ao contrário do que se passa na França. Philip Roth deve estar assustado com a vulgarização dos best sellers e com o fato de que há menos livrarias. Acho que ele é muito pessimista. Na França, a situação é bem melhor. Há muitos leitores. Conheço a vendagem dos livros de bolso Folio, por exemplo. São coleções que vendem de 10 milhões a 12 milhões de exemplares por ano – e esses livros são comprados para ser lidos. A França também é o país do mundo em que há mais salas de cinema e mais filmes projetados. Na Alemanha, é muito difícil ir ao cinema e até em Nova York não é fácil. Também há o fato de que a literatura francesa é mais velha e a tradição entre o poder político e a literatura é muito antiga. A corte e os reis de França desde muito cedo se interessaram pela literatura. Isso também aconteceu na China e no Japão.

BM: Nos Estados Unidos, a literatura está cada vez mais influenciada pelo cinema, e a tendência é escrever um romance como se faz um roteiro, com tudo previamente planejado. Na França, os escritores se deixam levar mais pela escrita. A que se deve isso? Ao nouveau roman ou a uma maior independência da literatura em relação ao cinema?
WEYERGANS: A questão aí é de dinheiro. Nos Estados Unidos, as pessoas do dinheiro entenderam que podiam ganhar ainda mais dinheiro com o que se chamava de literatura, com o que se chamava de cinema. No velho debate entre a arte e o dinheiro, nós assistimos hoje a uma grande vitória do dinheiro, e eu espero que isso seja provisório.

BM: Você acha que o dinheiro também é vitorioso na Europa?
WEYERGANS: Acho que a vitória do dinheiro não está totalmente assegurada na Europa, mas acredito que virá, e eu, aliás, temo isso. Vão deixar de publicar os livros mais difíceis, os primeiros romances um pouco complicados. As pessoas do dinheiro, nos Estados Unidos, se disseram que só o tema conta e que elas iam promover romances que parecem roteiros de filme. A televisão é a atual dirigente do mundo, do planeta.

BM: A propósito, aconteceu uma coisa engraçada quando eu cheguei aqui. O garçom me disse que você estaria esperando alguém da televisão e não eu.
WEYERGANS: A coisa é terrível. Seria necessário escrever um ensaio sobre o poder da televisão. Todos os dias eu me culpo por não ter o ânimo necessário para fazer isso.

BM: Recentemente, na Feira de Frankfurt, Octavio Paz lembrou que os grandes autores clássicos nunca adularam os leitores, fizeram pouco caso dos preconceitos ou da moral vigente, que eles não temiam a solidão e nunca correram atrás do sucesso. Concluiu que a literatura nada tem a ver com as leis do mercado. O que você pensa disso?
WEYERGANS: Octavio Paz deve conhecer mal a história da literatura. Rabelais, que era médico e também fazia traduções do grego e do latim a pedido do editor dele, escreveu as aventuras de Pantagruel e de Gargântua porque sabia que nas feiras de então só era possível ganhar dinheiro com livros engraçados – e ele os escrevia para poder republicar Aristóteles em edição bilíngue.

BM: Balzac também escrevia por dinheiro, ganhava por linha.
WEYERGANS: Claro. O dinheiro e a arte sempre estiveram ligados. Há uma história de amor e de ódio entre a arte e o dinheiro. Não conheço artista que não tenha se confrontado com a questão do dinheiro num ou noutro momento da sua vida. Uma das garantias do gênio na arte é saber dialogar com o dinheiro.

BM: Joyce sabia?
WEYERGANS: Soube encontrar uma senhora que o financiava.

BM: Jamais ganhou a vida com os livros, mas tinha mecenas.
WEYERGANS: O que importa é o dinheiro.

BM: Lacan dizia que, para fazer bem o trabalho de psicanalista, a gente não devia depender dele para viver. A posição do Octavio Paz sugere que os romancistas e poetas não tenham que viver da escrita.
WEYERGANS: O melhor é não depender da venda dos livros publicados. Na sociedade burguesa, os artistas também sobreviveram porque o resto da sociedade os amava e os financiava. Veja o exemplo de Rilke. Jamais ganhou o suficiente para viver dos livros, mas foi alojado por uma duquesa benevolente. Os meus primeiros livros não venderam muito. Mas, como eu publicava e as pessoas me conheciam por causa da televisão, me acontecia de um dentista ou de um advogado me dizer na hora de pagar a consulta: “Ora, você não paga, não me deve nada, porque eu gosto do que você escreve”.