François Jacob: A vida

François Jacob: A vida

Betty Milan
Texto integrante do livro O século.
Publicado como “Genética da tolerância”,
Folha de S. Paulo
, 1/03/1998

François Jacob nasceu em 1920 na cidade de Nancy. Em junho de 1940, no segundo ano da Faculdade de Medicina – que ele cursava para se tornar cirurgião –, alistou-se nas forças livres da França. Quatro anos depois, foi gravemente ferido na Normandia. Terminada a guerra, recebeu a Grande Cruz da Legião de Honra e voltou ao curso médico, embora não pudesse mais se especializar em cirurgia, como queria. Em 1950, ingressou no Instituto Pasteur, no serviço do professor André Lwoff (1902-1994), e, passados quinze anos, recebeu o Prêmio Nobel pela contribuição ao estudo do código genético e a descoberta do RNA-mensageiro, juntamente com seu mestre Lwoff e o bioquímico Jacques Monod (1910-1976). É autor do livro A lógica da vida. Uma história da hereditariedade, lançado na França em 1970 e publicado no Brasil, assim como O rato, a mosca e o homem. De 1982 a 1988, foi presidente do Conselho de Administração do Instituto Pasteur, do qual é professor emérito, título igual ao que tem no Collège de France.

A CIÊNCIA E A IDEOLOGIA

Betty Milan: O senhor começou os estudos de medicina com a intenção de ser cirurgião. Interrompeu-os para se alistar na Resistência, nas Forças Francesas Livres, as de Charles de Gaulle. Depois da guerra, se tornou geneticista em vez de cirurgião. Por quê?
François Jacob: Fui gravemente ferido e já não havia como me dedicar à cirurgia. Tenho um braço e uma perna defeituosos. Quando voltei para à faculdade, quis trabalhar só como médico interno. Eles não aceitaram. Fiquei tão desgostoso que resolvi fazer outras coisas. Fiz um pouco de jornalismo, de cinema… No fim, me decidi pela pesquisa genética. O que ocorria na União Soviética interferiu na minha decisão, o lissenkismo. Como você sabe, para Lyssenko, a noção de espécie era uma ideia burguesa. Fez lá umas experiências, que permitiram transformar uma espécie noutra e depois se valeu delas para atacar a genética. Esta, segundo ele, era incompatível com o materialismo dialético. Conseguiu convencer o Comitê Central e o Estado soviético inteiro. Por causa de Lyssenko, muitos geneticistas russos foram deportados para a Sibéria e morreram. Era um charlatão, mas também na França, e em vários países da Europa ocidental, as ideias dele foram sustentadas pelos comunistas…

BM: O senhor então escolheu a genética também para se opor à intolerância…
JACOB: Sim, porque achava incrível que, na metade do século XX, fosse possível rejeitar trinta anos de uma ciência sólida e até condenar as pessoas à morte…

BM: Nós estamos no fim do milênio e, embora a noção de raça tenha desaparecido do vocabulário científico, ela continua a ser usada pelos que querem encontrar um fundamento biológico para diferenças culturais. Seria possível explicar por que os cientistas desautorizaram a noção de raça?
JACOB: No século XIX, quando começaram a falar de raça, diziam que havia quatro ou cinco raças; depois, passaram para nove ou doze; e, finalmente, para 65. Quanto mais características a gente estuda, mais raças encontra. Por isso, os biólogos já não falam em raça, e sim em população. Trabalham comparando a diversidade dos caracteres, que é tão grande no interior de uma mesma população quanto entre duas populações diferentes. O conceito que tem valor operatório é o de espécie, que permite saber se os seres podem ou não se acasalar e engendrar. O de raça não tem valor operatório. O Brasil é, aliás, um ótimo exemplo da maneira como os caracteres se diluem… Em 1995, estive no Rio de Janeiro para as cerimônias do centenário de morte de Pasteur. E inclusive assisti ao Carnaval.

A CIÊNCIA E A ARTE

BM: O senhor diz que a ciência, como a arte, é uma das grandes aventuras da humanidade. O que há de comum entre o cientista e o artista? E o que há de diferente?
JACOB: O que existe de comum é o fato de que no começo de tudo há um esforço de imaginação. Dele tanto depende a ciência quanto a poesia, só que o cientista é obrigado a confrontar a realidade imaginada com a realidade em si, enquanto o poeta pode fazer qualquer coisa. A diferença está em que na ciência existe um progresso contínuo. As descobertas de Newton foram superadas pelas de Einstein. A biologia do século XIX é menos boa do que a de hoje, que, por sua vez, será menos boa do que a do próximo século. Na ciência, a gente é determinada pela ideia do progresso, está certa de que faz coisas mais avançadas do que os outros fizeram. Já na arte não faz sentido algum falar em progresso. A escultura da Grécia clássica ou do Egito não é menos boa do que a escultura moderna. Picasso não é melhor do que um pintor do século passado…

OS SUCESSOS DO INSTITUTO PASTEUR

BM: Verdade… Gostaria que nos detivéssemos na ciência. No século passado, Pasteur revolucionou a medicina com a crítica da Teoria da Geração Espontânea. Depois, os alunos dele descobriram a vacina contra a tuberculose, a BCG. A biologia molecular, de que o senhor é um dos principais expoentes, desenvolveu-se no Instituto Pasteur. O vírus da Aids também foi isolado aí por Montagnier. Como explicar essa tradição de sucesso científico?
JACOB: Há vários fatores. Um deles é a maleabilidade do Instituto. Quando Pasteur encontrou a vacina contra a raiva e a Academia de Ciências o instigou a criar um Instituto, ele não quis que este se ligasse à universidade. Porque havia sido reitor e conhecia os empecilhos. Criou uma instituição privada capaz de se autofinanciar, produzir vacinas e vendê-las para pagar a pesquisa. A maleabilidade do Instituto Pasteur permitiu que respondêssemos com rapidez aos imperativos da pesquisa, que a biologia molecular se desenvolvesse e o vírus da Aids fosse isolado… Até o fim da guerra, o Instituto pôde financiar a pesquisa com a venda das vacinas. Depois, passou a receber do Estado uma parte dos recursos. Isso por não ter conseguido industrializar os antibióticos.

BM: A primeira parte do século foi dominada pela física; a segunda, pela biologia. Quais as principais descobertas da biologia no século XX?
JACOB: No começo do século, a gente sequer conhecia os genes. A genética não existia. Conhecíamos as células e tínhamos a impressão de que tudo se passava na massa gelatinosa que existe dentro delas, o protoplasma. Depois, descobrimos a proteína e a importância dos hormônios. Com isso, a visão sobre os seres vivos mudou e houve um grande progresso na segunda metade do século, com o nascimento da biologia molecular, que procura explicar as propriedades dos seres pela estrutura e pelas interações das moléculas que os compõem – nós antigamente só sabíamos falar da “força vital”…

BM: Qual a maior descoberta da biologia molecular?
JACOB: A maior delas foi o famoso DNA, que é o portador da herança genética. Inúmeros sucessos da biologia molecular se devem ao trabalho com as bactérias. Já nos anos 30, os biólogos perceberam que todos os organismos eram feitos das mesmas moléculas, porém demorou até passarmos das bactérias para os organismos mais desenvolvidos. O DNA do homem é mil vezes mais complexo do que o da bactéria. A passagem só pôde ser feita no momento em que aprendemos a manipular o DNA dos organismos mais desenvolvidos. Nos anos 70, conseguimos isolar os genes, reproduzir a estrutura dos genes de qualquer organismo e transferi-los de um organismo para outro.

BM: Como foi descoberto o sistema de regulação da atividade dos genes, o achado que valeu ao senhor o Prêmio Nobel?
JACOB: Trabalhei no começo com os bacteriófagos – os vírus das bactérias – e com a síntese de proteína. Verificamos que existia um vírus que permanecia no interior da bactéria sem se manifestar, mas que em certas condições podia ser ativado e matar a bactéria. Por outro lado, verificamos que a síntese da proteína resultava da colocação de certos produtos no meio de cultura. Percebemos depois que as mesmas leis vigoravam nos dois casos e tudo dependia de um sistema de regulação que tanto podia bloquear a atividade de um gene quanto desbloqueá-la, deixando-o se manifestar. Era a prova da existência de sistemas de regulação da atividade do gene.

A MUTAÇÃO DOS GENES NA ORIGEM DO CÂNCER

BM: Como se chegou à ideia de que a mutação dos genes pode levar a um câncer?
JACOB: Começamos a compreender o câncer há apenas alguns anos. Sabíamos que é uma doença do sistema de regulação. Uma bactéria é uma célula isolada que se multiplica independentemente. Já uma célula humana – seja ela da pele, do fígado ou do pulmão – sabe que faz parte de um órgão, de um organismo, e que portanto não deve se multiplicar de qualquer maneira. A célula sabe, porque há sistemas que a informam – os sistemas reguladores. Consequentemente, a célula é mantida numa ordem precisa, que é a do corpo. De tempos em tempos, esses sistemas se alteram. Foi o que mostramos através das bactérias. Observando as suas mutações, pudemos estudar os sistemas e formular a hipótese de que era a alteração dos sistemas que estava na base do câncer. Agora, já está provada a existência de sistemas constituídos de certo número de genes que regulam a expressão celular, ou seja, agenciam a divisão da célula e a sua diferenciação – o processo que faz com que uma célula venha a ser da pele, por exemplo, ou do fígado. Passamos a conhecer os genes que estão implicados na divisão celular e a compreender como a mutação deles pode levar a um câncer.

BM: O que faz o sistema se desregular?
JACOB: Desregula-se por uma mutação, cuja causa é desconhecida ou conhecida, como no caso da ação dos raios ultravioleta sobre a pele. Os raios quebram os genes que regulam a divisão celular e provocam uma lesão em que a divisão é anárquica.

A GENÉTICA PREDITIVA

BM: Através da genética, é possível saber se o indivíduo vai ou não ter uma determinada doença. Seria possível falar dos principais achados da genética preditiva?
JACOB: Há casos em que, olhando os genes de um recém-nascido, chegamos a prever a incidência de uma doença grave que ocorrerá por volta dos 40 anos, a doença de Huntington, por exemplo. Há outros em que podemos afirmar que há maior ou menor possibilidade de o indivíduo ter uma determinada doença. Examinando os genes do senhor X e do senhor Y, podemos afirmar que, se o primeiro tiver um câncer, este não será do pulmão, mas da próstata. Se o segundo tiver um câncer, este não será da próstata, e sim do pulmão. Ou seja, há casos em que nos é dado ter certeza da doença. Outros em que nos limitamos a predizer a sua possibilidade.

BM: Quais os problemas éticos implícitos na genética preditiva?
JACOB: O assunto é muito complicado. O fato de sabermos que um dia vamos morrer é difícil de suportar, mas o que torna a morte suportável é que a gente não sabe quando ela vai ocorrer. Há um filme de René Clair que se chama Aconteceu amanhã. Trata-se da história de um sujeito que encontrou um fantasma, foi gentil com ele e passou a receber todas as noites do fantasma o jornal do dia seguinte. Com isso, podia jogar na bolsa e ganhar, apostar no cavalo certo etc. Vida boa, até que um dia lê no jornal o anúncio da sua morte. Fica desesperado, tenta não passar pelo lugar onde vai ser acidentado, porém não consegue. O acidente é horrível; só que o sujeito não morre, porque interessava ao cineasta mostrar que os jornais também mentem etcétera e tal…

BM: Voltando à questão ética…
JACOB: A questão é saber se a gente deve ou não fazer a pesquisa genética, que só tem interesse quando existe uma solução terapêutica. No caso da doença de Huntington, por exemplo, não se pode fazer nada pelo indivíduo. De que adianta fazer a pesquisa? É válido se perguntar se as informações que concernem ao indivíduo devem ou não ser transmitidas a ele.

BM: A gente tem o direito de não transmitir a informação? Freud afirmou peremptoriamente que ninguém tinha o direito de não lhe dizer que estava com câncer…
JACOB: Mas com que direito a gente diz? Os padres e os filósofos precisam discutir longamente essa questão… É legítimo se perguntar se o médico deve informar o doente ou a família. Para evitar, por exemplo, que o doente tenha filhos. Isso tudo é complicado… E ao patrão dele, o que o médico deve informar?

SEXO AOS 100 ANOS

BM: Quais as consequências das descobertas que a biologia fez no século XX e qual o papel dessa ciência no próximo século?
JACOB: A ciência é feita para produzir conhecimento antes de produzir as aplicações do conhecimento. Para obter dinheiro, os cientistas afirmam que vão curar o câncer, quando o que de fato interessa a eles é saber por que o mundo é tal como é. O mundo é extraordinário. Por razões bastante simples, aliás. Pelo fato, por exemplo, de que é preciso ter dois para fazer um terceiro. Por que dois e não quatro ou cinco?

BM: O fato é que o conhecimento científico trouxe benefícios…
JACOB: Sim, a duração da vida aumentou. Acho no entanto que nunca seremos imortais…

BM: Felizmente.
JACOB: Pois é. Acredito que não ultrapassaremos os 100, 110 anos. Mas é possível que aos 90 anos já não tenhamos mais dor em todo lugar do corpo e que aos 100 possamos fazer sexo como aos 20. Vamos ter uma vida mais longa e mais agradável, porque dominaremos um número maior de doenças. Verdade que outras novas vão aparecer. Por isso, aliás, não podemos prever o futuro. Sabemos que as coisas vão mudar, porém não sabemos exatamente como. Por acaso alguém pensou na Aids antes de a doença aparecer? E precisamente porque não há como prever; no próximo milênio a pesquisa científica continuará a ser uma boa profissão.