França-Brasil, viagem pitoresca
Prefeitura de Paris, 1998
“Nossos ancestrais são os gauleses”. Isso é o que os manuais de história ensinam aos franceses, que também têm entre os seus antepassados um índio brasileiro, Ecoméric, da tribo dos tubinambás. Ecoméric chegou a França, no século XVI, durante o reinado de Catarina de Médicis. Vi o seu rosto esculpido numa gruta de Doué la Fontaine, na Vendeia, onde há registro da descendência deste tupinambá até a Revolução Francesa.
O fato mostra como são antigos os laços entre os dois países. Tanto que se justifica pensar numa verdadeira história de amor entre eles – talvez porque os franceses nunca conseguiram nos colonizar.
Existem manifestações dessa história desde o século XVI. Já então, o Brasil foi tema literário e filosófico dos franceses. Da primeira tentativa fracassada de colonizar o Brasil, a de Villegaignon, no Rio de Janeiro, ficou-nos uma pequena obra-prima, Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, companheiro de Villegaignon. Léry conta a sua estada entre os índios e tanto menciona o temor de ser por eles comido quanto a zombaria de que foi vítima por causa do temor. “— Não comemos os amigos”, dizem-lhe os silvícolas.
Os índios brasileiros também são o tema de um dos melhores ensaios de Montaigne, Dos canibais, que funda em plena guerra de religião, em apenas algumas páginas, o humanismo europeu. Um ensaio que, no mínimo, teria sido uma bela esperança!
Como o amor é recíproco ainda que nem sempre simultâneo – como diz Lacan —, a França do século XVII foi tema de um dos carnavais da Beija-Flor. A escola tratou da invasão francesa no Maranhão vista por Luís XIII e mostrou índios com cocares de renda, pois, segundo Joãozinho Trinta, o rei assim imaginava os silvícolas.
Depois de Villegaignon, no fim do reinado de Luís XIV, em 1711, os franceses tentaram se estabelecer no Brasil com a expedição de Duguay Trouin, que não vingou. Mas, ainda no século XVIII, embora de maneira menos guerreira, eles aqui se estabeleceram. Graças aos enciclopedistas, em quem os inconfidentes se inspiraram.
No século XIX, com a invasão de Portugal por Napoleão e a mudança da corte para o Rio de Janeiro, a hora da França no Brasil chegou. Embora contrários às ideologias vigentes na França, os portugueses difundiram nos trópicos o estilo de vida daquele país. A tal ponto que a vida no Rio se tornou um reflexo da vida parisiense ao longo de todo o século XIX – aliás, a despeito da concorrência americana, ainda o é.
Foi a pedido de Dom João VI que Luís XVIII enviou ao Brasil a missão francesa – a primeira, pois entre 1816 e 1930 houve três. Era composta sobretudo de pintores, e entre eles estava Jean-Baptiste Debret, a quem, além das aquarelas, devemos a obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
Na mesma época, recebemos o célebre botanista francês Auguste de Saint-Hilaire, que fez um herbário com 30 mil plantas classificadas em 7 mil espécies. St. Hilaire foi o primeiro cientista autorizado a entrar no interior do país; de suas incursões resultaram livros de viagens que podem ser considerados outra prova de amor ao Brasil.
No século XX, durante a Primeira Guerra Mundial, o Brasil foi aliado da França e assinou o Tratado de Versalhes. Em 1920, o governo brasileiro solicitou ao francês que lhe enviasse uma missão militar encarregada de familiarizar os nossos oficiais com os armamentos modernos. Foi a segunda missão.
A língua francesa foi tão importante na formação dos oficiais brasileiros, que Alfredo de Taunay – descendente do pintor Nicolas de Taunay que veio ao Brasil em 1816 com a missão francesa – escreveu, em francês, uma das obras-primas da literatura mundial, A Retirada da Laguna, que trata de um episódio da Guerra do Paraguai (1864-1870).
A presença da França no Brasil foi também determinante na formação universitária. Uma terceira missão francesa fundou, em 193O, a Universidade de São Paulo. Entre os jovens professores estavam Claude Lévi-Strauss, que nos deu Tristes trópicos, e Ferdinand Braudel.
Passada a Segunda Guerra Mundial, as trocas entre os dois países novamente se intensificaram. Fernando Henrique Cardoso ensinou na Sorbonne na década de 196O. Outros conterrâneos estiveram e ainda estão nas universidades da França. A Universidade de São Paulo recebeu, nos últimos trinta anos, inúmeros expoentes da cultura francesa, entre eles, Pierre Clastre, Michel Foucault e Michel Serres, com quem tivemos o privilégio do convívio na Maria Antonia – ponto de passagem obrigatório de quem queria se informar sobre o que ocorria no exterior, mormente na França.
Agora, no fim do milênio, os franceses nos dão mais uma prova de amor dizendo que não vão ganhar a Copa. Torcem pelos canarinhos, por les Brésiliens, Ronaldô e Romariô.
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Prefeitura de Paris, 1998.