Baal VII

Entrevista de Betty Milan para a Revista Clube Monte Líbano.

 

1. Por que você escreveu Baal?

Precisava escrever este romance por várias razões. A demolição do palacete construido pelo meu bisavô materno para a minha avó Madalena Maluf foi um crime. O bisavó chamava Faiad Maluf e era originário de Zahle. Imigrou no fim do século XIX, antes ainda da abolição dos escravos. Começou como mascate e conseguiu enriquecer o suficiente para que o palacete fosse construído. Muitos imigrantes, recém chegados do Líbano, foram recebidos na torre do palacete, inspirada no minarete do Cairo. O  edifício estava destinado a se tornar um memorial da imigração, análogo, ao que existe em Miami, relativo à imigração cubana. O palacete era uma jóia do Oriente no Ocidente, feito com o que havia de melhor na época e merecia ser preservado. A demolição foi um crime, que eu chamo de memoricídio – crime contra a memória.  Também escrevi Baal, que é a história do imigrante Omar, para rememorar a história simultâneamente trágica e bem sucedida da imigração libanesa no Brasil. Não fossem os nossos antepassados, o comércio não teria se desenvolvido  tanto no país. No romance, eu focalizo o mascate, cuja inteligência é notável. Foi com a tradição dos fenícios que os libaneses conquistaram aqui o seu lugar ao sol ( ou melhor, à sombra).

 

2. Qual é sua relação com o Líbano e com a cultura libanesa?

Estive no Líbano recentemente, graças ao convite do cônsul Rudi Al Azzi para participar da Conferência Internacional da Diáspora, onde  fui surpreendida por uma homenagem do Ministro das Relações Exteriores, que me ofereceu um cedro «  for your contribution to the country of your ancestors ». Adorei os sítios históricos e particularmente Baalbeck, que é tão importante quanto o Parthenon. O território do Líbano é patrimônio da humanidade, mas a situação do meio ambiente é lamentável. Supostamente por causa dos refugiados. O mundo inteiro devia se empenhar para resolver a situação. A salvação do planeta implica a do território libanês, que narra a história da civilização. A próxima conferência sobre o clima deveria ser em Beirute.

 

3.Fale sobre sua família, sobre sua infância, sobre sua relação desde criança até hoje com sua ascendência libanesa. Por favor, relacione os nomes dos seus avós, pais, irmãos… (Quem da família quiser citar)

Do lado paterno eles são originários da montanha, Kfaraab, um vilarejo que eu fui visitar com  meus primos. A família do escritor Amin Maalouf também é de lá. Fiquei muito comovida ao ver que uma parte da casa do meu avô paterno, Jarjura Rachid Milan,  que imigrou no começo do século XX, estava  e pé – duas paredes de pedra no meio das quais havia as flores de que eu meu avô falava. Passei uma parte da infância com os avós paternos, que moravam em Capivari. Vivi, por assim dizer, no Líbano do Brasil, degustando as  maravilhas que a avó Helena preparava na cozinha e ouvindo as histórias que o avô Jarjura contava em árabe e português, lembrando sempre que as palavras do português, começadas em al, são originárias do árabe. Sobre a família paterna, eu escrevi no meu primeiro romance sobre a diáspora, O Papagaio e o Doutor, que acaba de ser reeditado pela Record porque está sendo filmado nos Estados Unidos. Passei a infância entre São Paulo e Capivari. Na adolescência, eu vivi mais em São Paulo, com a família da avó materna, Madalena Maluf, que foi uma das fundadores do Sírio Libanês, embora o nome dela não esteja no hospital. Gostaria que estivesse. Tenho uma foto do meu tio Eduardo Maluf, discursando no ato de fundação do hospital.  Meus pais, Rachid Milan e Rosa Maluf Milan foram extraordinários. Me propiciaram uma vida dedicada ao que eu desejava fazer, Psicanálise e Literatura. À maneira deles, eram feministas e minhas irmãs também são mulheres livres : a escultora Denise Milan, internacionalmente conhecida,  e a arquiteta e historiadora Marlene Milan Acayaba, professora da FAU.

 

4. Você tem filhos, sobrinhos? A cultura libanesa foi passada para a próxima geração da sua família? Você acha importante manter a cultura e as tradições? Por quê?

Tenho filho, sobrinhos e agora um neto, que é a minha paixão. O meu filho, Mathias Mangin,  é cineasta e, entre os filmes dele, existe o Dona Rosa, que foi premiado pelo MIS. O filme é sobre a história da minha mãe, contada por ela mesma, aos 95 anos. Descobri que Dona Rosa é uma atriz nata. Claro que é importante manter a cultura e as tradições. Os nossos antepassados tendiam a escamotear a história da imigração e a não ensinar a língua por considerarem que isso era melhor para a integração da descendência. Não é verdade. Afim de ter um passado, eu tive que reconstruir a história, pesquisando e reinventando. A minha meta, ao escrever Baal, também foi  difundir a história da imigração libanesa e os efeitos subjetivos dela. Nós só vamos superar definitivamente a xenofobia de que os nossos antepassados foram vítimas se aprendermos a valorizar a história deles. À sua maneira, os imigrantes são heróis. Muitos deles salvaram e salvam a descendência. Podemos esquecer isso ?

 

5.Você cursou Faculdade de Medicina e se formou em Psicanálise com o Lacan na França, mas se tornou escritora. Como você se autodenomina e como foi esse caminho profissional que te levou à Psicanálise e à Literatura? E por que Lacan?

A Medicina eu cursei porque era o desejo do meu pai. Mas, já na Faculdade, eu estudava Psicanálise o tempo todo. Aos 21 anos, no terceiro ano,  fui convidada para entrar na Sociedade de Psicanalise filiada à Internacional. Mas não me dei bem e, depois de fazer na USP uma tese de doutoramento em psiquiatria, fui ter com Lacan para continuar a minha formação em Psicanálise. Pretendia ficar 4 meses em Paris mas, por assim dizer, Lacan me raptou, me arrebatou, e eu fiquei 4 anos, fasendo análise com ele.  Durante estes anos, também ensinava no Departamento de Psicanalise da Universidade de Vincennes. Graças  à análise, superei a minha aversão às origens, a minha auto-xenofobia e pude escrever O Papagaio e o Doutor .

 

6. Seus textos literários se misturam com seus estudos sobre Psicanálise. De que forma?

Com a Psicanálise eu aprendi a escutar e passei a escrever estilizando a oralidade, inventei a língua da minha literatura como outros escritores brasileiros que procuraram atrelar a língua escrita à língua oral. A exemplo de Mario de Andrade e de Oswald. Sou uma escritora que se inscreve na tradição paulista. Por outro lado, valorizei nos meus textos a rememoração, sem a qual nós não paramos de nos repetir. A rememoração é o que sustenta a cura analítca.

 

7. Você escreveu romances, mas também escreveu para teatro e foi colunista de jornal e revista. Quais as diferenças básicas de escrever para cada área e conte um pouco sobre o que escrevia nas suas colunas?

O romance é o gênero mais difícil. Passei anos para escrever O Papagaio e o Doutor, Consolação e Baal.  Além da pesquisa, implica  o trabalho da narrativa, os diálogos, o monólogo interior, etc. O teatro é mais fácil porque a gente conta com a  interpretação do ator. Escrevi sete peças. Uma delas, Paixão, foi apresentada no Brasil inteiro por Nathália Timberg. Outra foi apresentada em Paris no Teatro do Rondpoint e outra está sendo adaptada para o cinema em Nova York por Richard Ledes, com um grande ator no papel de Lacan, o David Patrick Kelly. A peça chama Adeus Lacan e ainda não foi montada no Brasil. Gostaria, por sinal,  de montar todas as minhas peças.  Mas, para isso, eu preciso do patrocínio  de alguma instituição cultural. Já cheguei a dirigir duas peças. Uma foi para a Flliporto e a outra  estreou com sucesso no Itaú Cultural.  Quanto ao trabalho na imprensa, o mais importante talvez seja o consultório sentimental, que eu fiz durante dois anos na Folha e durante  cinco na Veja.com. As colunas foram publicadas em livro pela Record – Fale com ela e Quem ama escuta. Foram agora traduzidas para o francês e o livro estará nas livrarias francesas a partir de abril. Felizmente é uma editora séria, eres, e o livro se chama De Vous à Moi.

 

8. Quais as dificuldades, os desafios e os caminhos para ser uma escritora no Brasil?

As dificuldades são muitas. Primeiramente o fato de que não existe uma formação para se tornar escritor como nos Estados Unidos. A Faculdade de Letras não ensina a escrever. Outra dificuldade é decorrente do mercado. Um verdadeiro autor é, por definição, original e o mercado não quer saber disso. Por sinal não quer saber de literatura. Só de auto-ajuda. A literatura não vai desaparecer porque há coisas que só podem ser ditas através dela. Mas está sendo sufocada pela auto-ajuda ou pelos best sellers, cujo modelo é sempre o mesmo.

 

9. Como você escolhe o tema para escrever um livro, um texto, um artigo? O que te mobiliza e de que forma?

Tenho sido escolhida pelo tema. O que me mobiliza é o coração. Só que depois eu trabalho muito para chegar a um texto consistente e transmissivel. Para escrever Baal, por exemplo, eu fiz 25 versões. A Trilogia do Amor, que reune 3 textos meus – O Sexophuro, A Paixao de Lia e O Amante Brasileiro –  levou três decadas para ser concluída. Não tenho lugar e nem horário para escrever. O barulho não me atrapalha. Mas, hoje em dia, eu prefiro os lugares onde a natureza está presente. Passo o verão na Bahia, escrevendo numa rede, embaixo de uma gameleira, a árvore sagrada da cultura africana. Da rede eu vejo as árvores e uma escultura da Iemanjá, feita por um grande artista  baiano, Doidão.

 

10. Quais são as emoções e o trabalho prático envolvidos no processo criativo e nas etapas de “construção” de um romance?

A escrita suspende a realidade e a gente se debruça sobre a atualidade para transfigurá-la. No meu caso, a escrita apazigua. Não vivo sem ela e  não preciso fazer meditação quando escrevo. A primeira etapa da construção do romance é a pesquisa. Simultâneamente,  vou tomando notas sobre o que eu desejo escrever. Depois, começa a construção que pode ou não obedecer a um projeto narrativo. Às vezes é a própria escrita que determina o caminho a seguir. Foi o que aconteceu, por exemplo, quando  escrevi Paris não acaba nunca, best seller no Brasil, que  foi publicado  depois em outros países, inclusive na China, em mandarim.

 

11. O que representou e representa na sua vida esses anos que você viveu entre Brasil e Franca?

Saí do Brasil na época da ditadura e também por causa do machismo. Aos dezoito anos, ao ver a Vitória de Samotracia no Louvre, eu me disse que ia viver em Paris. Depois da Faculdade de Medicina  fui  me especializar em Psicanálise com o Lacan e me casei lá. A partir daí, passei a viver nos dois países e trabalhar para os dois. O Brasil do qual eu gosto é o da natureza e da cultura popular. Sem ser moderno, o outro é cruel,  indiferente à desigualdade absoluta  entre ricos e pobres. A França é um país mais justo, que tem um grande apreço  pelo seu passado e sua cultura. A minha descendência se radicou lá e,apesar da falta que eu sinto, prefiro que seja assim. O meu netinho é franco-brasileiro e tem 25 por cento de sangue libanês (já eu tenho 100%- puro sangue).

 

12. Conte um pouco sobre seu envolvimento com a diáspora libanesa e os eventos de que você fez parte nos últimos anos.

Foram dois eventos importantes. O primeiro foi a tournéé,  nos Estados Unidos, onde eu fiz uma série de conferências ( Georgetown, Baltimore, Nova York) sobre a Diáspora, a Psicanálise e a Literatura.Fui bem acolhida e fiquei sabendo da Conferência Internacional da Diáspora no Líbano. Ao voltar para o Brasil fui ter com a Dolly Lahoud, assessora do cônsul, e ela me apresentou ao Rudi que me convidou a participar.Tanto a Dolly quanto o cônsul são pessoas profundamente inclusivas. Graças a eles eu conheci o Líbano e muitos libaneses interessantes.

 

13. Você já deu aulas, palestras, workshops? O que há para dizer a jovens que aspiram uma carreira literária? Alguma instrução, sugestão ou algum conselho?

Para ser escritor é preciso escrever incasavelmente. Só vale a pena se o desejo for incontornável. Mas também é preciso ler os clássicos e trocar idéias com quem entende da produção de um romance, uma peça, um ensaio ou um artigo de jornal. Na literatura, a amizade é fundamental. Devo muito do que fiz à troca de idéias com escritores amigos meus. Até hoje eu não entrego um texto para o editor antes de ser lida por quem entende e eu levo à sério todas as críticas.

 

14. Qual é, para você, o papel da literatura e da arte em um país como o nosso e no momento atual? Como a literatura e a arte podem ser usadas para educar ou para melhorar a vida das pessoas?

Acredito na impermanência. O momento que nós estamos vivendo passará e a arte fica. Cabe aos artistas resistirem o mais que puderem porque o seu trabalho tem uma função civilizatória. Também cabe aos ricos deste país patrocinarem a arte, como nos Estados Unidos. Ou seja, se valerem da acumulação de capital para investir  na arte, que difunde valores, é contrárià à xenofobia, ao racismo e à destruição do planeta. Como diz Amin Maalouf em O Naufrágio das Civilizações, nós estamos todos num mesmo barco que pode afundar. Quem não está convencido disso, deve assistir Teremos História ? do Leonardo de Caprio na Netflix.

 

15. De todas as suas obras, destaca alguma em especial? Por quê?

Fiz todas com o maior empenho, o desejo mais profundo de acertar. O Papagaio e o Doutor talvez seja o meu livro mais importante pelas questões em que ele toca : a imigração, a xenofobia, a desigualdade entre homens e mulheres… Imagine que eu escrevi o livro há trinta anos e os direitos foram comprados para o cinema americano no ano passado. Resumidamente, O Papagaio e o Doutor é um romance sobre os “turcos” do Brasil. A história é narrada por uma descendente deles, Seriema, que foi à França fazer sua análise com um renomado Doutor – inspirado por Jacques Lacan. Rememorando a análise e o passado dos imigrantes, ela se liberta do Doutor e dos ancestrais para se tornar quem ela deseja ser, cultivar a língua brasileira ou a língua do ão, em que ela sonha. Pela irreverência, Seriema evoca a Emília de Monteiro Lobato e o herói sem caráter de Macunaíma, de Mario de Andrade. Como Emília, ela diz o que pensa. Como Macunaíma, faz pouco do sentimento de culpa. Ri de si mesma e dos outros para se libertar. Só que, à diferença do herói sem caráter, ela não morre no fim do romance, não vira estrela, sai de cena gostando de ser brasileira, mestiça e mulher.

 

16. Eu gostaria que você falasse um pouco sobre dois livros: Consolação e A mãe eterna. Pode situar cada um deles no tempo e contar o que te levou a escrever sobre cada tema e o que aprendeu em cada processo?

Consolação eu escrevi depois da morte do meu marido, o pai do Mathias. Comecei por ter presenciado a longa agonia dele e não me conformar com o prolongamento inútil da vida. A personagem, Laura, volta para o país natal, mas não quer  encontrar os familiares ; ela erra pelas ruas de São Paulo, falando com os moradores de rua e depois vai ao cemitério da Consolação, onde  fala com os mortos. No final do romance, encontra a mãe que a consola, dizendo que « ninguém morre quando fica no coração de alguém ».  No romance A mãe eterna, que teve um grande sucesso, a mãe tem quase cem anos. Sua decadência física impõe à filha um drama: o de se tornar cuidadora e, portanto, mãe da própria mãe, que quase não anda, não enxerga, não escuta. O sentimento de orfandade é crescente, e, para suportar a dor, a filha escreve para a mãe que via, ouvia e comandava a vida no passado. Cao Hamburger comprou os direitos para fazer um filme, mas até agora…

 

17. Você pode lembrar brevemente a entrevista com o Octávio Paz, nos anos 90, e o que vocês conversaram sobre o Amor?

Tive que driblar o assessor de imprensa que nao queria me dar o contacto. Fiquei sabendo que o Octavio Paz estava no Hotel Lutetia e telefonei diretamente para ele. No começo, Paz negou. Depois, aceitou dar uma entrevista de dez minutos, na entrada do hotel. Acabamos indo para o saguão e a entrevista durou uma hora e meia. Pode ser lida no meu livro A Força da Palavra, também editado pela Record. O que  Paz disse de mais importante é que o amor é uma aposta na liberdade. Sempre cito esta frase.

 

18. Como está sua vida e sua produção atualmente? Onde as pessoas podem encontrar seus escritos, suas reflexões, seus “ensinamentos” em educação sentimental?

No momento  estou terminando uma novela, sobre o qual não quero falar ainda. Pretendo voltar a escrever para a imprensa. Os meus livros podem ser encontrados, através do site da Record ou do meu site:www.bettymilan.com.br. Muitas das minhas reflexões sobre a vida e o consultório sentimental estão disponívels gratuitamente no meu blog, o ABC da vida. Pus uma parte considerável do meu trabalho na internet –espaço betty milan. Fiz isso por saber que o Brasil  é um país sem memória e o livro é caro.

 

19. Por fim, você pode fazer uma breve reflexão sobre a importância da escuta e da escrita?

Nós tendemos a só gostar de quem é semelhante. A escuta é que permite gostar de quem é diferente. Porque, apesar de diferente, a pessoa fala como nós, tem a mesma natureza, nasceu para  a linguagem e o que ela diz pode nos tocar . No que diz respeito à escrita, por um lado ela  permite  suspender a realidade, o que é bom para o escritor e o leitor. Por outro lado, só através de certos livros, nós descobrimos o que está encoberto na realidade. A exemplo disso, Vozes de Tchernobil, de Svetlana, que ganhou o prêmio nobel de literatura . Gostaria de escrever um livro tão forte quanto o dela. Quem sabe ? A esperança é a última que morre. Obrigada pelas suas questões tão pertinentes.

 

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 Entrevista para a Revista Clube Monte Líbano (inédita).