Encontro com Paulo Bonfim

Encontro com Paulo Bonfim

BETTY MILAN
Publicado na Folha de S. Paulo, 22 julho 2019

 

Com Paulo Bonfim, eu estive uma única vez. Bastou, no entanto, para considerar que eramos amigos. A dedicatória de um dos livros que ele me deu confirma isso : fraternal lembrança de seu novo amigo.

Fui convidada para  o almoço na casa dele e não houve tema que não tenha sido abordado. Falamos sobretudo dos modernistas e dos nossos autores franceses preferidos. A pedido do anfitrião, contei como se deu o meu encontro com alguns escritores  entrevistados para a Folha de São Paulo. Françoise Sagan, que me disse ter gostado do sucesso de Bonjour Tristesse por não ter tido que se preocupar mais com ele. Octavio Paz, cujo último livro, A Dupla Chama, foi sobre o amor, sentimento tão caro a Paulo Bonfim, para quem « só amando nos renovamos ».

O poeta, que foi retratado por Tarsila do Amaral, se mostrou particularmente sensível às mulheres, manifestando o grande apreço pela companheira ali presente, Fafá, e pelas ancestrais, a mãe, a avó e a bisavó, cujas fotos ele fez questão de me mostrar. Levantou-se com certa dificuldade, saiu da sala e voltou trazendo as três preciosas fotografias. Sugeri que se fizesse uma colagem e ele gostou da idéia, que depois foi viabilizada.

Também de Lacan nós falamos.

– Em que consistia a psicanálise dele ?

Procurei explicar, mencionando a relação com a poesia e citei uma frase do mestre:  «  Não sou suficientemente bom poeta para ser um grande analista ». A citação me fez  lembrar de um verso de Paulo Bonfim que eu havia lido no dia anterior : « De palavra em palavra/ nós arranhamos o horizonte ».  Ousei então dizer que ele era um poeta lacaniano.

– Mas por que ?

– O poema não diz alcança e sim arranha, dando ênfase à falta. Lacan teria assinado embaixo porque, se não fosse a falta, o desejo não existiria.

O frescor de Paulo Bonfim, aos 92 anos, era impressionante. Poderia dizer : « Minha alma a tudo se entrega ». Como Montesquieu.

Antes de me despedir, recebi  Diário do anoitecer e Navegante , cujos poemas não parei de degustar, lembrando do homem que fazia juz  aos  seus versos : « Procuro renascer todos os dias/Não concordo em morrer vivo »  

Com ter renascido todos os dias,  escreveu uma obra que, além de eterna, é moderna : « A alma não cabe na memória dos computadores/ nem se enquadra no paraíso do consumo/ O mistério do Ser escapa às tecnocracias ».

Não fosse o tamanho de Paulo Bonfim, a Catedral da Sé não teria aberto as suas portas para a celebração da missa de sétimo dia. Não teria exaltado, pela primeira vez, a memória de um escritor, incitando outros a acreditar nas tão desacreditadas  letras e cultivar o livro  que, segundo o poeta é a táboa possível de resistir ao naufrágio e comandar marés : « Cabe a ele a missão de povoar solidões ».

Paulo Bonfim é verdadeiramente imortal, alcançou a eternidade que  é, como ele escreveu, « uma questão de  garra ou de Graça »