ELIANA BUENO *
O fio narrativo de O Papagaio e o Doutor é simples: Seriema, psicanalista brasileira, é recusada pela Associação Internacional de Psicanálise — que ela caracteriza, ironicamente, como “uma multinacional” — e vai à França estabelecer um contato, que pretende, inicialmente, seja puramente acadêmico, com um grande psicanalista, dissidente da IPA. Ao conhecer pessoalmente o autor das obras que admira, a personagem se dá conta de seu desejo de analisar-se com ele. Segue-se então a história dessa análise, até o fim. O tratamento implicará a aceitação, por parte da narradora, de suas origens libanesas, cuja história ela deverá rememorar; de seu desejo de uma identidade de “brasileira”, que ela deverá conceituar; e de sua feminilidade, que ela deverá deixar emergir. Seriema decidirá então voltar ao Brasil, assumir o português como língua de trabalho e de comunicação corrente e ter um filho.
O livro conta, pois, a história de uma busca de identidade através da Psicanálise e o sucesso dessa busca.
Numa primeira abordagem, pode-se ler essa procura de identidade no nível cultural — a heroína deverá assumir-se como “mestiça”: ponto de cruzamento e amálgama de culturas diversas. A busca que ela empreende de suas raízes, visando compreender as marcas que as mesmas poderiam ter deixado em sua personalidade, constitui a parte substantiva do livro que oferece ao leitor múltiplos aspectos da cultura dos libaneses emigrados para o Brasil. Nesse sentido é já um livro apaixonante, pois descobre um Brasil pouco conhecido de seus filhos ao mesmo tempo em que revela uma forma muito brasileira de ser, a que busca camuflar diferenças no mito da integração nacional.
Num segundo nível de leitura, entretanto, tem-se a história de um percurso analítico que chega a seu fim, não apenas no sentido temporal da expressão mas também quanto ao alcance de objetivos. Tem-se, pois, a história da constituição de uma identidade através de uma relação psicanalítica, relação assimétrica, em que estão em jogo sentimentos e emoções e da qual a frustração é, justamente, o motor. A escrita do livro pode ser lida, assim, uma vez que se trata de uma narrativa autodiegética, como o balanço final do tratamento, avaliação na qual figuram os pontos clarificados durante o percurso — os sentimentos que puderam encontrar palavras para se dizerem — e os pontos negros — marcas do que ficou por ser dito, marcas da frustração analíltica. E essa apreciação é, enfim, endereçada, indiretamente, ao psicanalista, o Doutor do título. Seriema escreve para dele se despedir. Seu relato pode ser lido como uma carta do analisando (e não analista, carta em que a agressividade não está ausente, mas na qual predomina, como aliás em toda a carta, o amor). Inveja e gratidão, poder-se-ia dizer, enformam o texto de Seriema, que pode cortar a relação concreta com o Doutor. Não porque esta não lhe sirva, mas justamente porque já a introjetou. Seriema diz não ao grande homem no seu papel de “doutor”, de sujeito a quem, inicialmente, o analisando pede respostas — como se o outro as tivesse — e de quem espera nutrição e afeto — satisfação. O fim do percurso analítico se dá, aliás, exatamente quando o analisando pode partir. A análise, esta, é interminável.
É assim que, por ter aceitado a relação com o Doutor, o papagaio-narradora emerge, enfim, também como Doutor. Só então o doutorado com que já desembarcara em Paris e o posto de professora que conquistara na universidade francesa terão verdadeiramente sentido.
Dentro dessa leitura, o título do livro remete não só à óbvia e estrutural tensão existente entre o analisando e o analista (sem falar nas tensões que outros níveis de leitura podem apontar, tais como a existente entre os hemisférios norte e sul, vistos como representações da cultura e da natureza), mas também a sua estrutural aliança, recuperando-se, então, o sentido coordenativo da conjunção “e”.
A narrativa é, assim, uma despedida e o início de um trabalho-solo dessa narradora que tem o curioso nome de Seriema.
E agora é esse nome que exige a atenção do leitor: Seriema. Que recado quer dar esse nome de ave tão desgraciosa? Por que essa narradora não se chama, por exemplo, Jandaia, a delicada ave companheira de Iracema que, além de estar ligada ao primeiro ícone da feminilidade brasileira, ainda é nome próprio corrente no Brasil? Por que o uso de um nome cujo antecedente literário está em A Hora e a Vez de Augusto Matraga, lá indicando, no entanto, uma pobre prostituta, incomodada por matutos num final de festa? Seriema, enfim, parece um nome depreciativo, nada adequado a essa doutora transcontinental. O que marcaria, pois, esse nome na economia da narrativa?
Segundo o Novo Dicionário da Língua Portuguesa, dirigido por Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, seriema é uma ave pernalta, de grande porte, originária da América do Sul. E cinza-sujo (sic), listrada de preto, bico e penas vermelhos. E tem crista ereta. Pertence à família das saracuras e galinholas.
A escolha do nome da personagem começa então a se clarificar. Pode-se pensar que, dentro do humor que enforma o livro, haveria aí uma referência à cor “azeitonada” da personagem. Mas há ainda outro traço a registrar dessa ave. Trata-se de sua função de “limpadora de área”, na medida em que se alimenta de cobras e gafanhotos, tornando-se, por isso, útil à lavoura. Assim, como o animal, a narradora caracterizar-se-ia como aquela que engole “cobras e lagartos”, quando não “sapos”, visando “limpar a área” para seu trabalho de autoconstrução.
Ainda o dicionário diz que o nome seriema vem do tupi — sari’ama. Que melhor nome para uma heroína que desejaria ser vista como paulista quatrocentona ou como uma descendente dos silvícolas americanos?
Finalmente, ensina mestre Aurélio que, em tupi, sari’ama, significa “crista em pé”. E esta última informação pode trazer a perspectiva conclusiva para a consideração da narradora e, conseqüentemente, do tom da narrativa. De fato, é como uma ave “de crista em pé”, indicando assim não só sua resistência à análise mas também sua disposição de luta pelo sucesso, que ela enfrentará o exame de sua condição de brasileira neta de imigrantes e de sua vivência da feminilidade nessa condição. É, enfim, sempre “de crista em pé” que ela anunciará seu desejo de ter um filho e assumirá a necessidade de achar um pai para esse filho.
Assertividade pode ser a palavra, uma palavra-chave para essa personagem. Assertividade, essa combinação tão delicada de agresividade e sensibilidade, de força e de senso de oportunidade. Uma personagem assertiva é, enfim, uma personagem positiva. Por que será, então, que, ao final da leitura, o leitor experimenta uma certa inquietude, um estranho mal-estar com a segurança da narradora?
Talvez porque Seriema não fale de amor. Fala da aceitação, sem “baixar a crista”, de sua condição de mestiça e de mulher. Fala do desejo de gerar — um filho mas também um livro, sem realmente estabelecer hierarquia entre um e outro desejo.
Teria sua análise sido interrompida cedo demais? Ou, ao contrário, estaria ela ainda, ao fim da narração, vivendo o desligamento do Doutor, experimentando ainda com ele a sempre conflituada relação amorosa? Como todo bom livro, este deixa questões, à última página.
Enfim, O Papagaio e o Doutor contribui e em muito para a história cultural do Brasil e para a reflexão, hoje de plena atualidade, sobre os temas das imigrações humanas, da xenofobia e da construção das identidades nacionais. Mas, como o interessante romance que é, contribui, sobretudo, para a reflexão sobre a vida dos membros da tribo dos viajantes, desses que se organizam em função do sentimento de errância. Desses e sabem que, afinal, nós somos todos estrangeiros nessa terra quando longe do porto da relação amorosa.
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* Intervenção na mesa redonda sobre Le Perroquet et le Docteur, na Embaixada do Brasil em Paris, a 22 de abril de 1997, por Eliana Bueno, professora de Literatura Brasileira na França.