Doutor Prodocopeia
O saber do analista e o da poesia
Betty Milan
Este artigo, do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi,
foi publicado com igual título em Singular & Plural, nº 6, julho, 1979
Dores e reumatismo
o remédio que aplaca
é sangue de rã viúva
nata do leite de jaca
cabeça de caranguejo
e cabelo de jararaca.
Misture tudo nas lágrimas
dos olhos d’uma sereia
água fervida sem fogo
o rastro duma baleia
num chifre d’um boitatá
mande aplicar na veia.
Para mordida de cobra
se aconselha cortar
onde a cobra mordeu
um pedaço do lugar
antes que o sangue corra
mande um defunto chupar.
Para torção de espinha
é deitar-se no chão duro
dar três pulos sem mexer-se
em três noites de escuro
banha de sola curtida
feita num cesto sem furo.João de Barros
Algumas estrofes de As receitas do Doutor Prodocopeia e as raízes dos disparates, onde João de Barros, cantador repentista, alinhava paradoxos e só nos dá receitas impossíveis. Como curar reumatismo, se para isto se requer sangue de rã viúva, cabelo de jararaca, lágrimas de sereia, água fervida sem fogo, rastro de baleia, chifre de boitatá? E mordida de cobra, se aqui se aconselha se fazer chupar por um defunto? Torção de espinha, se há que deitar e pular sem se mexer?
Cantadas, as receitas provocam riso; analisadas no seu texto, dão o que pensar. As doenças a que se referem não sendo incuráveis, o texto não é irônico. A cura do Dr. Prodocopeia se faz através do impossível. Não é, pois, do saber do médico que nela se trata, mas de outro saber diversamente eficaz enviando-nos ao analista.
Tal qual o doutor da poesia de João de Barros, o analista opera através do impossível. Faz como se fora o que não é — a figura imaginária de que o sujeito fala —, para nisso suscitar as fantasias onde o desejo se realiza e não se satisfaz.
Assim, o impossível aciona a cura analítica, que não visa suprimir o sintoma, mas, ao contrário, fazer assumir o sintoma impossível de se suprimir — o real senão a verdade do sujeito.
Entre a cura analítica e o Dr. Prodocopeia, uma analogia que fala do saber da poesia. Se aí os paradoxos são impossíveis, o impossível tem direito a vigorar. E, no dito da poesia, o que se diz é o inconsciente, cuja lógica — inexistência do princípio de contradição — ela atualiza.
Em Aprígio e Diana, outro texto de cordel, se lê:
Esse caso foi passado
quando a inocência havia
quando o barão Jocelino
lá no Egito existia
homem de gênio feroz
que adorava a tirania
Nesse tempo no Egito
existia o despotismo
cada homem de poder
era o rei do banditismo
só conhecia o cangaço
o orgulho e o carrancismo
Uns 300 cangaceiros
esse barão dominava
com três léguas de distância
da cidade ele morava
só tinha uma filha única
a quem mais ele adorava.Severino Borge da Silva
Reitera-se o impossível. A poesia desloca para o Egito o caso nordestino e concilia os inconciliáveis: Egito, barão e cangaceiro. Condensa como no sonho e, desta forma, exacerba a tirania que, para ser tamanha, não pode ser daqui — só do Egito, cuja função é irrealizar o caso e tornar real a tirania.
Ou seja, “não fosse o impossível, não haveria o real” — um dito que diria o saber do analista e aqui nos diz o da poesia.