Difusão da psicanálise lacaniana no Brasil
P: Quando se começou a falar de Lacan no Brasil?
BM: No fim dos anos 60, durante o governo militar. Ouvi falar dele, pela primeira vez, em 1968, numa reunião informal de intelectuais paulistas de esquerda, para a qual havia sido convidado um psicanalista francês, Joseph Attié, que praticamente só falou de Lacan quando nós esperávamos que ele falasse dos eventos de maio de 68. Esse fato, que irritou os marxistas mais ferrenhos, despertou a curiosidade dos que se interessavam pela psicanálise. Saímos da reunião querendo saber o que podia ser o tal do sujeito concebido através do significante, que relação existia entre a psicanálise e a linguística etc. Depois do encontro, formou-se um grupo que se reunia em Higienópolis, na casa da Regina Schneiderman, para ler os Escritos, A carta roubada. Havia cinco psicanalistas e uma filósofa, Marilena Chauí, que nos auxiliava a traduzir e a decifrar o texto, coisa em que tínhamos o maior empenho. Por um lado, Lacan representava o pensamento francês, tradicionalmente valorizado em São Paulo, cuja universidade começou nos anos 30 com uma missão francesa, na qual estava Lévi-Strauss. Por outro lado, Lacan era contrário à Sociedade de Psicanálise filiada à Sociedade Internacional de Psicanálise, cujos critérios de seleção de psicanalistas eram aberrantes e cujo autoritarismo nós então assimilávamos ao do governo militar, que tomou o poder em 1964, interrompendo o processo de democratização do país. Para ser admitido na sociedade, o candidato tinha que se submeter a uma infinidade de entrevistas e exames, entre os quais um eletroencefalograma. Sem saber exatamente por que, nós sabíamos que Lacan havia dito não à Internacional, e isso foi certamente decisivo.
O Brasil institucional, o Brasil dos golpistas, nos predispunha a aceitar o que chegasse do exterior e tivesse a marca do antiautoritarismo. Assim, por exemplo, o pensamento de Maxwell Jones, que contestou a organização hospitalar psiquiátrica tradicional e fez na Irlanda a primeira comunidade terapêutica, ou ainda o pensamento do fundador do psicodrama, Moreno. O psicodrama, aliás, teve grande importância nos fins da década de 60 e no começo da década de 70.
P: Como se formaram os primeiros analistas lacanianos brasileiros?
BM: Tivemos obviamente que nos submeter a uma análise lacaniana para saber em que consistia a interpretação, de que forma o analista intervinha, em que momento cortava a sessão etc. Isso tudo até o início da década de 70 era absolutamente desconhecido no Brasil. Nós, que só tínhamos nos deitado no divã dos kleinianos, sequer imaginávamos o que podia vir a ser a interpretação lacaniana. No fim da década de 60, estabeleceram-se os primeiros contatos de brasileiros com Lacan. Em 1971, depois de um breve estágio na comunidade terapêutica de Maxwell Jones, passei pela França e fui ter com Lacan. Falei da existência do nosso pequeno seminário de São Paulo e do desejo que tínhamos de convidar Serge Leclaire para fazer algumas conferências e assim começar um intercâmbio. Queríamos o Leclaire porque havíamos lido On bat un enfant e ele nos parecia mais acessível.
Quando fui procurar o Lacan, não tinha o projeto de me analisar com ele. Apesar das condições políticas do Brasil, das prisões e das torturas, nós éramos apegados ao país. Mas bastou encontrá-lo para que a possibilidade de ir à França existisse. Talvez porque ele tenha me feito falar das minhas origens logo de saída, tenha me remetido à história recalcada da imigração. Ao sair do consultório, eu já não era eu, era outra. Por causa das perguntas e da escuta dele, já não precisava negar o passado, como tendem os americanos descendentes de imigrantes, sejam eles do norte ou do sul. Lacan significou, de imediato, a possibilidade de rememorar e foi seguramente por isso que eu voltei, no dia seguinte, como ele pediu, e depois mais duas vezes, naquela mesma semana, até dizer que queria me analisar com ele e faria o possível para voltar à França, o que ocorreu dois anos depois, em 1973.
Na França, conheci o colega com quem fundei, em 1975, o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro – Magno Machado Dias (M. D. Magno), que também fez análise com Lacan. O Colégio foi fundado num bar do Quartier Latin, com a aprovação do Lacan, e teve, no começo dos anos 80, papel importante na difusão da psicanálise lacaniana no Brasil, não só porque as três primeiras traduções dos seminários foram feitas por membros do Colégio, mas ainda porque a partir de 1979, data em que voltei ao país, passamos a divulgar o pensamento lacaniano através da imprensa, o que era de certa forma contrário às ideias dos psicanalistas franceses, que se queriam herméticos e não falavam com jornalistas.
P: Por que o recurso à imprensa?
BM: Na França, existia o seminário de Lacan com um grande público e o Departamento de Psicanálise de Vincennes. No Brasil, a psicanálise só era ensinada nas sociedades de psicanálise filiadas à Internacional, e a universidade fechou completamente as portas para nós. Para não ficarmos restritos ao ensino no Colégio Freudiano, procuramos a imprensa, que logo abriu espaço. Verdade que a atitude dela era dúbia. Divulgava, mas o fazia apresentando Lacan como um extravagante e os analistas lacanianos como elitistas. Havia um cronista social que se referia à minha prática tratando-a de Lacan cancan. Na época, eu não achava graça alguma e, por isso, não percebia a importância da associação com o cancã. No Brasil, nem todo mundo lê, mas todo mundo canta e todo mundo dança. O samba diz mesmo que só não dança quem está doente da cabeça ou do pé. O Lacan cancan era uma brincadeira que permitia assimilar o Lacan. Nós brasileiros brincamos e tendemos a assimilar reinventando.
P: De que modo a teoria lacaniana foi reinventada no Brasil?
BM: Não diria que a teoria foi reinventada e sim que tivemos de reinventar a prática dos analistas, a prática senso lato, para não ficarmos marginalizados. O recurso à imprensa, no fim da década de 70, é um exemplo disso. Outro exemplo é o trabalho de pesquisa dos analistas nos cultos umbandísticos ou nas escolas de samba. Além de traduzir e ensinar Lacan, nós nos valíamos do nosso conhecimento psicanalítico e da nossa escuta para saber qual era a especificidade da cultura brasileira, o que a diferenciava da cultura europeia e das outras culturas latino-americanas. Foi nessa época que nos demos conta do quão importante o brincar era no Brasil; tanto quanto o droit na França, o honor na Espanha ou o humour na Inglaterra.
Nós nos dizíamos mesmo que o Brasil não era América Latina, era Améfrica Ladina. Isso, aliás, está escrito numa revista do Colégio Freudiano, que se chama Pato Lógico. Paradoxalmente, nós descobrimos o que era óbvio, mas fomos os primeiros a criticar a elite a que pertencíamos pela desvalorização sistemática da cultura do brincar, que é a do povo brasileiro e é a mais autêntica. Disso resultou, em 1985, um grande Congresso no Rio de Janeiro, no Copacabana Palace, A Psicanálise do Brasil, organizado pelo Colégio Freudiano, do qual participaram artistas e intelectuais de várias áreas e reuniu cerca de mil pessoas. Zé Celso esteve lá. Gilberto Freyre, já com mais de 80 anos, foi de Recife para o Rio de Janeiro a fim de participar do Congresso, que se encerrou com um baile animado pela Beija-Flor, então dirigida por Joãosinho Trinta. Homenageou o Colégio, agradecendo a publicação de uma entrevista dele num livro que se intitulava Psicanálise Beija-Flor.
Nesse Congresso, nós afirmávamos que a psicanálise não podia estar dissociada da realidade e da cultura brasileira e que procurávamos difundir tanto quanto possível a “lógica paraconsistente”, criada por um lógico brasileiro do estado de São Paulo, Newton da Costa, uma lógica que não se baseia no princípio da não-contradição e, portanto, serve para pensar o inconsciente, que também desconhece aquele princípio.
P: O que aconteceu depois do Congresso de 1985?
BM: Em 1985, o pensamento lacaniano já estava bastante difundido no Brasil e havia várias associações no país, algumas ligadas ao Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, outras à Causa Freudiana (de Paris) e ainda outras sem ligação alguma com essas duas instituições. Atualmente, essas associações todas existem e as ligadas à Causa Freudiana se preparam para formar uma escola. Além disso, Lacan é hoje ensinado nas universidades e nos serviços de psiquiatria dos hospitais.
P: O que explica que Lacan, sendo tão francês, tenha tido tal penetração no Brasil?
BM: Lacan talvez fosse o mais brasileiro dos franceses. Por isso ofereci a ele, quando cheguei na França para me analisar, um pente fabricado pelos índios do Brasil. Digo o mais brasileiro dos franceses sobretudo pelo modo como elaborava a sua teoria, valendo-se de todos os saberes do seu tempo e os reinventando conforme as necessidades da sua elaboração. Ora, esse modo de operar caracteriza a nossa cultura, que é dita antropófaga, porque devora o que é produzido pelas outras culturas e modifica o que assimila em função das suas necessidades. O melhor exemplo disso talvez se encontre no Carnaval, que se apropria dos símbolos estrangeiros e os transforma para se fazer. As pirâmides do Egito, no desfile da Marquês de Sapucaí, são de espelho, porque o brilho, no desfile, é fundamental. A esfinge tem a cara de uma das nossas mulatas e a vestal grega sempre aparece sambando.
P: Você foi a tradutora do primeiro seminário do Lacan publicado no Brasil, o Seminário n° 1. O que significou traduzir Lacan?
BM: Foi um trabalho particularmente difícil. Primeiramente, porque foi necessário cunhar os conceitos psicanalíticos, traduzir, por exemplo, pela primeira vez o ça francês, o que obrigava a analisar as diferentes possibilidades na língua portuguesa e considerar ainda o alemão, o porquê da escolha do es por Freud. Além do ça, a tradução do moi, do après coup e de outros conceitos era problemática. A minha situação talvez fosse equivalente à dos franceses que traduziram os primeiros textos dos filósofos alemães e penaram para dizer, na língua francesa, o que se dizia tão facilmente em alemão. Tive a sorte de poder apresentar a Lacan os problemas que surgiam à medida que eu avançava. Dava a ele a minha questão, por escrito, e relacionava os motivos que me levavam a adotar uma ou outra solução e ele depois escrevia no mesmo papel a sua observação. As soluções conceituais adotadas foram todas submetidas a Lacan e por ele aprovadas. Por outro lado, o trabalho foi difícil por se tratar da transcrição de uma fala, o que implicava não apenas escrever na nossa língua o melhor texto equivalente à transcrição, mas ainda escrever em português um texto que pudesse ser tomado pela transcrição de uma fala em português. Noutras palavras, era preciso imaginar como Lacan teria falado no Brasil. Hoje, quando considero a tradução, eu me digo que ela tem as qualidades e os defeitos de um trabalho pioneiro. Gostaria de revê-la e, se a editora permitir, vou fazer isso.
P: Você lançou recentemente um romance, O Papagaio e o Doutor, inspirado na sua experiência com Lacan.
BM: O termo inspirado é justo. Digo isso porque não se trata de um romance autobiográfico, embora eu tenha escrito a biografia de uma brasileira que precisa de um psicanalista francês para se curar do sintoma da imitação, que é o da elite brasileira. Ela precisa de um grande homem, como gosta de chamar o analista, para deixar de ser um papagaio e descobrir a América. Mas o que mais me interessava no romance era mostrar, através do relato das sessões com o psicanalista, o que é uma análise lacaniana, em que consiste a sua estratégia e a sua tática. Desejava que o romance fosse um testemunho do espírito analítico e da ética implícita na cura.
P: Será que você podia ler uma das sessões da sua personagem?
BM: Vou ler a sessão que começa com uma questão do analista e diz respeito à descoberta da América:
– Sangue índio na sua família? Uma pergunta inesperada. Queria mesmo saber se ainda que remotamente eu era uma silvícola? se acaso descendia daqueles seres que se exibiam inteiramente nus e se atiravam para embarcar nos navios europeus, acreditando assim partir para o céu? Se ali estava, como outrora os tupinambás, para animar as festas francesas, propiciar a reis e rainhas, bispos e prelados, o espetáculo do Novo Mundo? Onde o arco e a flecha? as plumas e os maracás? Respondi engolindo em seco:
– Só libaneses, emigrantes
– Que mais? indagou ele, já então noutro tom, imperativo.
– Mais sou eu aqui na França, uma estranha até entre as estátuas.
Xan, o dramaturgo, agora entrou em cena:
– O país, a casa, os familiares… Uma grande largada, de um para outro continente… como se você tivesse partido descobrir a América! Sim, e com tanto me entregou à rua, à América, a que através dele eu havia de descobrir. Indicando a epopeia, me fascinou e me amarrou.
Escolhi esta sessão porque ela mostra a importância que Lacan dava às origens para abordar a questão da identidade e o quão drástica era a intervenção do mestre. Lacan também foi um grande analista por ter sido um homem de teatro.
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Respostas ao questionário preparado por Alain Didier-Weill para entrevista com a autora na TV francesa, que permaneceu inédita, 1994. Faz parte do livro O saber do inconsciente / Trilogia psi.