Difusão da língua e da literatura brasileira

Difusão da língua e da literatura brasileira

Salão do Livro de Paris, 1998

 

Antes de passar a palavra aos cinco convidados, Nélida Pinõn, José Sarney, Carlos Heitor Cony, Dionísio Toledo e Solange Parvot, gostaria de dizer algumas palavras sobre o tema da mesa, que é A difusão da língua e da literatura brasileira.

Em 1924, no seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil, o poeta modernista Oswald de Andrade escreveu: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”(1).

Com essas poucas frases, ele se autorizava a escrever como se fala e indicava a via que ia ser seguida pelos escritores brasileiros identificados com a língua do povo, uma língua vagarosa, de vogais abertas, quase cantada, um português que a África moldou. Já em 1924, o poeta dividia as águas da literatura brasileira, separando os que estilizariam a língua falada dos outros, que, para escrever corretamente, seriam até capazes de telefonar para Lisboa.

Oswald de Andrade, com seu manifesto, se separava do português de Portugal, só que, paradoxalmente, ele procedia como o autor de Os Lusíadas, Camões, que sempre preferiu as formas populares às formas cultas das mesmas palavras e nunca hesitou em romper com a sintaxe clássica para não sacrificar o ritmo da sua frase, porque não era a lógica da gramática, e sim a da fala, que o interessava.

Os escritores brasileiros que se reconhecem na língua popular só podem privilegiar o ritmo porque de norte a sul e de leste a oeste é a música que nos inflama. Isso quer dizer que esses escritores não têm como escapar à irreverência gramatical, estão a ela destinados, são lusófonos à maneira de Camões.

O procedimento dos escritores não resulta de um chauvinismo ou de um regionalismo qualquer, mas da necessidade de fazer uma literatura que não esteja dissociada do real. Traduzir esta literatura para línguas em que a língua literária não coincida com a língua falada, como, por exemplo, o francês, é o desafio sem o qual não há e nem pode haver difusão da nossa arte.

Para existir fora do seu país de origem, a literatura depende do tradutor, que, por amar a diferença, pode ir de uma para outra língua incansavelmente até chegar ao texto traduzido, em que os conterrâneos dele reconhecerão um texto que lhes diz respeito, porque, no cenário diferente descortinado pelo escritor estrangeiro, há algo que é universal.

Não fosse o tradutor literário, este escritor tão único que renuncia à autoria, a literatura jamais seria uma pátria sem fronteiras. Nós estaríamos condenados ao patriotismo literário – “menos nocivo do que o realismo socialista, mas igualmente estéril”, como disse Octavio Paz(2).

Sem a tradução, sem a mestiçagem, não há difusão da literatura estrangeira a que o tradutor se presta. Desta vocação nós precisamos, para que os ventos novos da cultura mestiça brasileira possam soprar na França, que diz com Descartes “Je pense, donc je suis”, mas também pode, à maneira de Rabelais, dizer “Je ris, donc je suis”. E por isso está preparada para acolher o Brasil, um país que é sério, porque nele a seriedade não exclui o riso, e a festa – como o jogo – é essencial.

III. Gilberto Freyre – o sociológo brasileiro que renovou a sociologia deste século por repensá-la através da sexualidade, o que outros chamavam de “vergonhas” – afirmou que o rejuvenescimento das palavras e das línguas se dá através da assimilação de sons de línguas estranhas(3). Por estar convencida da afirmação deste grande ensaísta, vou dizer aqui, antes de terminar, um poemazinho de Oswald de Andrade, cujo título é “Contrabando”(4):

 

Os alfandegários de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
Uma saudade feliz
De Paris

 

Isso posto, passo a palavra à senhora Nélida Pinõn, já pedindo a ela, como aos outros, que se limitem a dez minutos, para que a sala depois possa se manifestar.

Introdução feita por Betty Milan como apresentadora da mesa-redonda no Salão do Livro de Paris, março, 1998.

 

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Introdução à mesa-redonda “A difusão da língua e da literatura brasileira”, Salão do Livro de Paris, março de 1998.

(1) O manifesto ícone do modernismo brasileiro foi publicado inicial e parcialmente nas páginas do jornal Correio da Manhã, em março de 1924, sob o título de “Manifesto da Poesia Pau Brasil”. Um resumo consta do capítulo “Falação” do livro Pau Brasil, lançado em Paris (1925).
(2) Paz, Octavio. “Alrededores de la literatura hispanoamericana”. In: Mediacíones. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1979.
(3) Freyre, Gilberto. Camões, vocação de antropólogo moderno? São Paulo: Conselho da Comunidade Portuguesa, 1984.
(4) Andrade, Oswald de. “Contrabando”. In: Pau Brasil. Edição fac-similar. Paris: Sans Pareil, 1925.