Diáspora, psicanálise e literatura
Corpo Freudiano de São Paulo, 2019
Se não fosse a diáspora que me precedeu, eu não teria escrito os meus principais romances, O Papagaio e o Doutor – já traduzido para o inglês– e Baal. São romances em que a diáspora é tratada de diferentes maneiras. A heroína de O Papagaio e o Doutor é uma descendente de imigrantes, enquanto o herói de Baal é um imigrante.
Em geral, quando falamos da imigração, nós pensamos nos fatos que a determinam: a guerra e as dificuldades objetivas de imigrar. Na minha Literatura, cujo parentesco com a Psicanálise é evidente, o que me interessa são as consequências subjetivas da imigração. Gilberto Freyre, grande intelectual brasileiro do século passado, dizia que ele era um escritor de formação sociológica sistemática. Na trilha dele, eu digo que sou uma escritora de formação psicanalítica sistemática e, muito ousada, acrescento que sou uma “mulher-ouvido” como Svetlana Alexiévich, a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2015, autora, entre outros, de Vozes de Tchernóbil, um romance no qual ela diz que não se interessa pelos fatos ocorridos no desastre nuclear de 1986 em Tchernóbil, e sim pela vida das pessoas que ela escutou… Também escuto para escrever e escrevo estilizando a oralidade.
O que me interessa nos romances relativos à diáspora é a história sentimental dos imigrantes e dos descendentes, uma história que, por diferentes razões, tende a ficar encoberta. Entre estas razões, a intolerância à qual os imigrantes e os descendentes estão continuamente expostos.
Além da discriminação racial, religiosa e sexual, existe a discriminação étnica. Ou seja, a discriminação a um grupo que se diferencia por sua especificidade sociocultural, refletida na língua, na religião e nas maneiras de agir. A intolerância, neste caso, se manifesta sobretudo através da xenofobia.
Vivi a xenofobia na pele por ser descendente de imigrantes libaneses que foram para o Brasil no final do século XIX para não servir o exército turco ou, mais simplesmente, para escapar da guerra. O Líbano então fazia parte do Império Otomano. Na época, a travessia era feita no porão do navio e as condições eram precárias, mas, contrariamente ao que acontece hoje, a maioria dos imigrantes sobrevivia. Havia menos gente na Terra.
Há vinte e cinco anos eu escrevi O Papagaio e o Doutor, inspirado na minha análise com Lacan e na travessia dos meus ancestrais. Tive a sorte de ter como leitora Michèle Sarde, ex-professora de literatura francesa na Universidade de Georgetown. Michèle escreveu o prefácio da edição francesa em que ela diz(1):
“Não faz sentido, hoje, querer saber se esta narrativa, tão bela quanto inteligente, pertence a um ou outro gênero literário – romance ou autobiografia. Um livro é o produto de um eu diferente daquele que manifestamos na sociedade, em nossos hábitos, em nossas vidas. Basta que se classifique O Papagaio e o Doutor no gênero pós-moderno. Romance ou autobiografia, autoficção ou ensaio romanesco, novela ou conto, autorretrato ou poema em prosa, há muito tempo que a Europa de Kundera, a América de García Márquez e das universidades do Norte nos libertaram deste falso problema, que os grandes escritores, tão indiferentes aos críticos literários quanto aos doutores da Sorbonne, já haviam resolvido.”
Um dos temas do romance O Papagaio e o Doutor é a xenofobia dos brasileiros em relação aos libaneses, dos libaneses em relação aos brasileiros e da protagonista em relação a si mesma. Ele é uma metáfora da imigração. Aconteceu no Brasil, mas poderia ter acontecido em qualquer outro lugar. Por isso, no romance, o país não se chama Brasil, e sim Açu, que significa “grande” em tupi-guarani.
Só foi possível escrever este romance por eu ter feito análise. Graças a ela, pude me observar e revelar, através do texto, as diferentes formas de xenofobia que estão na origem da crise de identidade do imigrante, uma crise capaz de implodir o mundo como ninguém hoje ignora.
De saída, aparece no romance a xenofobia em relação ao imigrante. Os primeiros libaneses que chegaram no Brasil saíram do seu país natal para escapar dos turcos e, paradoxalmente, nos trópicos, eles eram chamados de turcos ou de come-gente. Nas fazendas, onde o mascate ia vender as suas mercadorias, as mulheres saíam correndo de medo assim que o estrangeiro aparecia. Acima de tudo elas queriam distância.
Porém, é preciso dizer que, se o nativo é xenófobo em relação ao imigrante, o imigrante também o é em relação ao nativo. Assim, a avó libanesa da protagonista do romance chama os nativos do Brasil de brasilii, fazendo um muxoxo, ou seja, um sinal de desprezo. Quanto ao avô, ele se orgulha de não ser um brasilii, faz questão de lembrar que é descendente do grande povo fenício, tem quatro mil anos de tradição, ao contrário dos nativos, cuja tradição é de quinhentos anos apenas.
A xenofobia do imigrante em relação ao nativo tem consequências sérias para o seu descendente, que fica dividido entre os ancestrais e os conterrâneos. Nesta situação, só é possível encontrar um caminho através do distanciamento, e é o que acontece com Seriema, a heroína do Papagaio e o Doutor. Ela vai a França fazer uma análise para descobrir por que ela é um ser impossível.
Além das duas formas de xenofobia já mencionadas, existe uma terceira: a xenofobia do descendente do imigrante em relação a si mesmo. Assim, quando a heroína Seriema vai ver o psicanalista, ela omite a história dos seus ancestrais, dos que largaram do Cedro para fazer a América, ou seja, ela escotomiza (suprime inconscientemente da memória ou da consciência) a saga dos avós libaneses. Como outros filhos de imigrantes, Seriema quer o passado trágico da imigração esquecido.
Isso me leva a afirmar que o descendente do imigrante tende a dissimular a sua história, porque não deseja ser quem é, não deseja ser o filho ou neto de quem teve que se excluir do país natal e foi humilhado no país da imigração. Noutras palavras, ele é vítima da autoxenofobia. A imigração é uma ferida narcísica que se transmite de uma para outra geração, e a história do descendente depende da relação de cada imigrante com o seu passado.
Analisando detidamente a história da minha família, eu me dei conta de que há duas posições subjetivas. A primeira posição é a daquele imigrante que deseja esquecer o passado; a segunda é a do outro que tende a glorificá-lo. A exemplo da primeira posição, a avó da protagonista do Papagaio e o Doutor. A avó se limita a falar da imigração, dizendo: “Do Líbano para o Brasil, aos 14 anos, cinco filhos, porque maktub, estava escrito, e é só isso”(2). Sonega o passado e, talvez por razões narcísicas, se apresenta como a origem de tudo.
O descendente, cujo ancestral procede desta maneira, fica privado das suas verdadeiras origens; ele fica, por assim dizer, amputado. O passado é como um buraco negro. Para evitar o sofrimento, ele precisa dizer não ao ancestral sonegador, rememorando o passado como for possível, ou seja, reinventando.
A segunda posição subjetiva é a do imigrante que exalta o seu passado, como o avô da heroína. Por ser um contador de histórias, ele introduz a neta no Oriente, fala dos reinos do lírio e do papiro, do Nilo e dos faraós, de obeliscos solares, pirâmides e da esfinge, sua guardiã. Segundo a heroína do romance, já pela origem, as histórias eram mágicas, “… pequenas pérolas antigas. que o avô entregava em nossa língua e no árabe, que se insinuava como mistério…”.
Graças a este avô, que exaltava o seu passado, a heroína também o valoriza(3):
“Os reinos, a história, o idioma das cortes nababescas se desvelando como odalisca para nos fazer mais imaginar e ainda querer… O Oriente do Oriente, mas também do Ocidente — Andaluzia, al Andalus, a Espanha das cidades fortificadas que não se podem tomar. Alhambra, aquala hamra, o castelo vermelho da cor da tocha, cortes em que os poetas eram semideuses e um bom verso equivalia a um vizirato. Civilização, astronomia, astrologia, trigonometria, álgebra — de origem árabe — al-mofada, al-moço, al-mofariz, as palavras todas começadas por al, árabes como açúcar de sukkar, laranja, de narany.”
O imigrante que valoriza o seu passado dá ao descendente a possibilidade de se debruçar sobre ele, entender o porquê da imigração e superar a disposição para a xenofobia. Com isso, ele tanto terá o país dos ancestrais quanto o seu.
Como a guerra é inevitável, a imigração também é, mas o esquecimento pode ser evitado, o “memoricídio”, um crime tão grave quanto o homicídio. E pode ser evitado através do ensinamento da língua do imigrante para o seu descendente. Com isso, ele não terá um descendente que não fala a sua língua, e o descendente não ficará privado do seu passado linguístico. Sofri na pele esta privação. Os meus ancestrais não só não me ensinaram a sua língua como se valiam do árabe para dizer o que eu não podia saber. Também por isso, eu fui ter com Lacan, o analista que inspirou o Doutor de O Papagaio e o Doutor.
O romance tanto focaliza a imigração quanto a cura analítica, à qual a heroína, pelas suas origens, não pode escapar. O seu drama tem a ver também com o gênero. Seriema não se identifica com o seu sexo biológico por duas razões. Primeiramente, por ser uma mulher moderna e ter tido ancestrais com as quais ela não pode se identificar por causa do arcaísmo delas. Além de viverem só para o casamento e a maternidade, não concebem a existência sem um filho homem. Em segundo lugar, o sexo biológico é um problema para a heroína porque ela é a primogênita numa família oriental, ou seja, ocupa um lugar destinado ao sexo masculino. Para fazer jus à primogenitura e se tomar por um homem, ela não pode se entregar ao seu corpo de mulher e se tornar mãe.
O drama da heroína se manifesta na análise, quando ela diz ao Doutor que não pode ter filhos por não poder dar a eles o seu sobrenome. Noutras palavras, a maternidade contradiz o sexo imaginário de Seriema. Mas graças à análise, ela conquista a possibilidade de escolher um pai para o filho e se tornar mãe.
O romance O Papagaio e o Doutor mostra como isso acontece, dando claramente a entender de que forma o analista procede e quais os recursos de que ele se vale para vencer a resistência da analisanda até que ela possa assumir as suas origens e a sua identidade sexual.
Foi por ter escrito O Papagaio e o Doutor que, duas décadas depois, eu escrevi o romance Baal, cujo tema central é o “memoricídio” decorrente da autoxenofobia ou do ódio de si. Sobre este livro eu prefiro falar depois de ter escutado o que vocês organizadores deste evento prestigioso vão dizer. Adianto que ele foi um trabalho de longo fôlego, pesquisas sobre o Oriente Médio e o Brasil do século XIX, além da escuta das muitas histórias que eu ouvi os ancestrais imigrantes contarem ao longo da vida. Graças ao Baal, eu fui convidada a participar da Conferência Internacional da Diáspora, no Líbano, onde eu recebi uma homenagem do ministro das Relações Exteriores “pela contribuição ao país dos seus ancestrais”.
A rememoração literária foi uma aventura que me permitiu saldar uma dívida simbólica e que poderá, eu espero, iluminar o caminho de outros descendentes de imigrantes.
____________
Evento-homenagem “Rememorar para evitar a repetição”, organizado pelo Corpo Freudiano de São Paulo, 19 outubro de 2019.
(1) Sarde, Michele. Prefácio. In: Le Perroquet e le Docteur. Paris: Editions de l’Aube, 1996.
(2) Milan, Betty. O Papagaio e o Doutor. Rio de Janeiro: Record, 1998.
(3) Milan, Betty. Op. cit.