Crianças de rua

Crianças de rua

Congresso da Escola Lacaniana do Rio de Janeiro, 1998

 

O debatedor debate as ideias alheias, mas, para tanto, é preciso antes que ele se posicione. Isso é o que eu vou fazer tecendo algumas considerações sobre as crianças ditas de rua.

O nome do menino ora é Toquinho, ora é Manchinha, dependendo do bando em que está. O nome dele é circunstancial.

O endereço do menino? Candelária, sem número, ou então Praça da Sé. Nemo(1) não tem endereço certo. Por força da situação, ele é um nômade.

O menino é dito de rua, como se estivesse fadado a não sair dela; e, assim, na inconsciência do nosso dito, nós o condenamos ao traficante, ao justiceiro ou à polícia. Sua vida depende do que dizemos.

Isso foi o que Joãozinho Trinta me lembrou na Flor do Amanhã(2), invertendo uma pergunta que eu lhe fiz:

 

— Gostaria de entrevistar os meninos da Flor do Amanhã, João.

— Tiveram que sair do Rio…

— O que foi que eles aprontaram?

— Ora, você devia me perguntar o que foi que os outros aprontaram com eles.

 

A inversão deslocou a culpa das crianças para os outros e, com isso, me aproximou delas.

O que eu primeiro aprendi com essa aproximação é que a mídia mostra as fotos e o cotidiano da criança, mas não lhe dá ouvidos. O efeito disso é o encarceramento dela na sua condição, que é trágica. Para que possa escapar à tal condição, é preciso que ela seja ouvida. Só a fala pode lançar uma luz sobre o modo como se deve agir com a criança dita de rua.

Da escuta na Praça da Sé e na Flor do Amanhã eu tirei algumas conclusões e elas são as seguintes:

 

A CASA NÃO DEVE SER UMA IMPOSIÇÃO,

MAS UMA CONQUISTA.

 

A passagem da rua para a casa deve resultar de uma demanda dos próprios meninos. É preciso que assim seja, para que a integração possa se fazer. Noutras palavras, um dos imperativos da ação é:

 

NÃO DESEJAR PELA CRIANÇA, MAS DEIXAR

QUE O DESEJO DELA SE MANIFESTE

E IR AO ENCONTRO DO MESMO.

 

Isso significa que ACIMA DE TUDO É PRECISO ESCUTAR. A surdez pode precipitar a ruptura ou desencadear a violência. Assim, por exemplo, duas semanas antes do desfile da Flor do Amanhã, os meninos destruíram as alegorias todas porque não foram idealizadas e propostas por eles.

O entendimento só é possível se nós lhes deixarmos a iniciativa que, aliás, sempre foi o maior trunfo dos abandonados, a condição mesma da sua existência. A rua ensina a encontrar por si só as soluções requeridas e este ensinamento deve ser valorizado.

Trata-se, portanto, de ACEITAR A CULTURA DA RUA. Isso se traduz, por exemplo, em abrir mão de um planejamento a longo prazo, porque a criança abandonada é imediatista. Isso eu também aprendi na Flor do Amanhã, onde o preparo do desfile não podia se fazer com meses de antecedência como o desfile das outras escolas. Tudo se fazia de última hora, fantasia, adereço ou alegoria. O imediatismo e a improvisação, para os meninos, são a condição mesma da sua vida. O tempo deles não é o da casa, mas o do roubo e o da fuga, o tempo da metralhadora ou do jato, ultramoderno.

A criança que vive na rua em tudo difere da outra. Pode quem só come quando tem o que comer ser moderado à mesa? Pode quem dispõe do território inteiro da cidade – ora dorme sob a marquise, ora na praça – se limitar ao espaço da casa? Pode quem na rua grita para ser ouvido falar baixo como se deve? Ou acreditar na Lei, se nunca ela teve a seu favor?

A cultura da rua é outra. E desconhecida por nós. Quem se dispõe a trabalhar com os abandonados deve primeiro ser um aprendiz. Só depois terá como ensinar o comer, o dormir, o falar e o respeito à Lei. Foi isso que levou Joãozinho Trinta a abrir o espaço Flor do Amanhã, inaugurar a primeira escola em que não devia haver mestre e quem ensinava era a criança; não teria livros e a escuta seria o recurso maior do aprendizado. Uma escola em que o doutor iria para se formar brasileiro e eventualmente desfilar na ala que os pivetes para ele reservasse: a ala do maior abandonado, mas ocupado. Isso porque, sem estar propriamente identificado com a criança, ele já teria descoberto que a cultura do brincar é, neste país, a via da integração. O Carnaval é um recurso privilegiado para ensinar o prazer do corpo a quem só sabe do gozo do sexo e da droga, e o futebol pode servir para ensinar a Lei através da brincadeira.

O espaço Flor do Amanhã não teve continuidade, mas o seu ideário talvez deva ser retomado, porque ensina a respeitar a diferença e, assim, deixa a subjetividade aflorar, a das crianças de rua e a dos “mauricinhos”, a dos menores e a dos maiores.

Seja como for, o trabalho com a criança é decisivo, porque nos dois Brasis se escuta que a sorte dos filhos do gozo, dos filhos sem pai (só da mãe), é trágica e que esta tragédia resulta dos desmandos da colonização.

Esse trabalho é decisivo, porque o abandono não é a sorte exclusiva da criança dita de rua. Quem não sabe dele? Ou por ter se sentido abandonado na infância ou por ter desejado inconscientemente abandonar o próprio filho.

 

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Congresso da Escola Lacaniana do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ), 1998.

(1) A palavra latina nemo significa “ninguém”, correspondendo às expressões populares “zé-ninguém” e “joão-ninguém”, dicionarizadas como “indivíduo sem importância, que não tem peso social e é destituído de qualquer poder econômico”.
(2) Flor do Amanhã foi um projeto social desenvolvido no Rio de Janeiro pelo carnavalesco Joãozinho Trinta para dar apoio a crianças de rua.