Claudio Magris: A cultura da fronteira

Claudio Magris: A cultura da fronteira

Betty Milan
Este texto, que integra A força da palavra, saiu como
“O homem de lugar nenhum”, Folha de S. Paulo, 7/04/2002

Professor, conferencista, autor de ensaios, romances, peças de teatro, além de inúmeros artigos publicados inclusive na imprensa internacional, o italiano Claudio Magris se formou em língua e literatura germânica na Universidade de Turim e é tradutor de Kleist, Ibsen, Schnitzler, Büchner… Um gigante das letras, foi também senador entre 1994 e 1996. Especialista na cultura da região que ele chama de Mitteleuropa – Europa do Meio, que não quer ver confundida com a denominação Europa Central –, ele nasceu na cidade portuária de Trieste em 1939 e foi nomeado em 2001 pelo Collège de France para ensinar durante o ano letivo na Cadeira Europeia. Colaborador permanente do jornal Corriere della Sera, tem dois volumes publicados sobre seu trabalho jornalístico. Dois de seus principais livros, Danúbio e Microcosmos, foram traduzidos no Brasil.

Segue a entrevista que Claudio Magris nos deu no Salão do Livro de Paris. Nela, o escritor tanto fala da labilidade da Mitteleuropa, do qual é originário, quanto da importância das palavras no amor. Aborda o tema da amizade, explicando que ela implica a solidariedade, mas também a severidade. Na tradição dos clássicos, Magris faz a apologia da viagem. Last but not least, afirma que Guimarães Rosa é um dos seus autores preferidos e Grande sertão: veredas é a maior história de homossexualidade já escrita – através da qual ele diz ter descoberto que a homossexualidade também lhe diz respeito: “Porque a gente não ama um sexo, ama uma pessoa”.

Betty Milan: O senhor é um especialista da Mitteleuropa. Quais os limites dessa Europa e quais as suas características culturais?
Claudio Magris: Não é possível responder a essa questão. A Mitteleuropa – e não a Europa Central – é como um chiclete. É, no entanto, um espaço cultural com certa unidade. A história da palavra Mitteleuropa é curiosa. Foi inventada no século XIX por economistas da Áustria para designar um espaço econômico do Danúbio, dominado por húngaros e alemães. Dezenas de anos mais tarde, a palavra deu nome a uma literatura que tinha a ver com a mistura de nacionalidades, mas não com o domínio de uma sobre a outra. Um escritor amigo meu, de Praga, que fez o discurso no enterro de Kafka, disse que ele era hinternationale, ou seja, situava-se além da nacionalidade.

BM: O hinternacionalismo é mais interessante do que o internacionalismo…
MAGRIS: Claro. Depois de designar uma literatura, a palavra Mitteleuropa designou um projeto nacionalista alemão – um projeto nazista –, e um projeto supranacional – contrário ao nazismo. Neste caso, a palavra funcionava como metáfora de negação. Já na época do poder soviético, indicava uma resistência cultural ao regime, uma cultura que era um verdadeiro laboratório do mal-estar na civilização e que agora talvez desapareça. Porque o capitalismo vai destruir as diferenças.

BM: Numa das suas entrevistas, o senhor disse que é originário “de parte alguma”, ou seja, de Trieste. E o senhor escreveu com Angelo Ara um livro chamado Trieste. Un’identità di frontiera (“Trieste, uma identidade de fronteira”). Gostaria de saber o que significa ser originário “de parte alguma” e em que consiste a “identidade de fronteira”.
MAGRIS: Quando eu disse que era originário “de parte alguma”, eu me vali de uma metáfora, claro, de um recurso literário. A função da metáfora é fazer um aspecto da realidade aparecer de maneira indireta. Kafka não escreveu A metamorfose porque alguém se transformou em inseto, e sim para mostrar a terrível perda de humanidade que ameaça os indivíduos. Nasci e cresci em Trieste, que eu deixei aos 18 anos. Trata-se de uma cidade italiana que pertenceu durante quase toda sua história ao império dos Habsburgo, com uma arquitetura que não é italiana, com uma minoria eslovaca, com judeus, com pessoas que chegaram de todos os países da Europa e se tornaram italianas. Uma cidade com pessoas que morreram lutando pela Itália, verdadeiros patriotas, mas que eram originárias de outros lugares. Trieste tem uma identidade que não pode ser definida, à qual nós podemos apenas fazer alusão. É um lugar onde se tem o sentimento de estar na periferia da história. Um lugar esquecido do Adriático. Quando eu era criança, depois da Segunda Guerra Mundial, vivíamos numa grande incerteza. Não sabíamos se a cidade pertenceria à Itália ou à Iugoslávia – o que significaria ficar sob o domínio de Stálin.

BM: Um lugar como Trieste estimula a escrever, a se enraizar na escrita. O que têm a sua vida e a sua literatura a ver com as suas origens?
MAGRIS: É muito estranho. Por um lado, eu sou muito enraizado na minha cidade. Gosto de uma certa imobilidade na vida. Sou incapaz de me separar do que quer que seja. Não sou capaz de dizer adeus a nada. Só viajo para voltar. Por outro lado, existe a curiosidade. Trata-se de uma fidelidade polígama. Creio que a incapacidade de dizer adeus tem algo a ver com a herança da Mitteleuropa, com um sentimento de que qualquer mudança pode ser terrível. Não procuro fazer as diferentes coisas que faço, sou levado a fazê-las. Tenho a sensação de que cada um deve construir a sua vida como uma arca de Noé, de que só assim é possível se salvar.

BM: A palavra salvar é recorrente nos seus textos, nas suas entrevistas… Numa delas, o senhor diz: “Nomear é salvar”.
MAGRIS: Nomear é dar importância, identidade, valor às coisas. Não nomeio os euros que tenho no bolso. São importantes para viver. Mas eles não têm nome. Qualquer um pode ser substituído por qualquer outro. E o escritor se interessa pelo que é insubstituível. Tenho, aliás, a sensação de que nada pode ser substituído. Nem mesmo o meu porquinho de leite, um animalzinho que era muito inteligente e que eu cito em Danúbio. Quando ele morreu, fiquei muito triste, e as pessoas me diziam que eu podia comprar outro. Isso me deixava horrorizado. Posso encontrar outro animal, mas substituição não pode haver. A gente pode ter amado uma pessoa e depois gostar de outra, que não substitui a primeira.

BM: Só o ato de  nomear permite criar seres insubstituíveis.
MAGRIS: Sim, é a premissa indispensável. Sem nominar não há amor. A gente ama alguém que tem um nome. Existe justiça na nominação. Lembro-me de uma passagem de uma autobiografia ditada pelo marechal chinês da Longa Marcha, Chu-Teh, em que ele dizia que a mãe não tinha nome, era como uma galinha que põe ovos, uma galinha qualquer.

BM: Impressionante. Isso é tão revelador da China quanto do espírito dos que fizeram a Longa Marcha. Depois de Trieste, uma identidade de fronteira, o senhor publicou Danúbio, porque um amigo sugeriu que o senhor fosse a Viena e escrevesse sobre a cidade. Qual a importância da amizade e da viagem no seu trabalho?
MAGRIS: Trata-se de uma questão essencial. Não teria escrito o livro se um amigo, diretor do Corriere della Sera, não tivesse me dito que eu tinha outras coisas a escrever além da crítica literária. Sugeriu que eu fosse a Viena, não para escrever sobre isto ou aquilo, mas para escrever o que me passasse pela cabeça. A amizade teve um papel fundamental na minha vida. E não só a amizade com os homens. Também com as mulheres. Porque a gente tem a sensação de fazer o caminho com o amigo, junto. De fazer isso com solidariedade e severidade. Porque os amigos não são indulgentes. Constatei isso num momento da minha vida em que me perdi. Os amigos me indicaram que eu estava no caminho errado. O amigo é um juiz, porém é um juiz que, depois de ter dito a verdade, fica do seu lado.

BM: E a viagem? Qual a importância da viagem na sua literatura?
MAGRIS: A viagem é tudo, ela é a vida, a odisseia, a descoberta do outro, a experiência da alteridade. Através dela, a gente experimenta o mundo e a própria capacidade ou incapacidade de encontrar os outros. É disso que trato em Danúbio. Porém, também há nele encontros com a paisagem. Às vezes, a paisagem não diz nada, porque a gente está fechada para ela.

BM: Depois da morte da sua esposa, o senhor publicou, em 1997, Microcosmos, livro que recebeu o prestigioso Prêmio Strega. O texto é feito de fragmentos, e o senhor observa universos mínimos. Algo a ver com o minimalismo?
MAGRIS: Eu me interesso pelo que é pequeno para extrair dele o grande. Falar em minimalismo pode ser redutor.

BM: O seu procedimento então é análogo ao de Freud. De um simples lapso, ele extraía uma epopeia…
MAGRIS: Sim, é disso que se trata.

BM: E o senhor é ou não contrário ao minimalismo?
MAGRIS: Não sou contrário, mas a teoria minimalista tende a considerar que as coisas podem ser substituídas, que uma equivale à outra, e eu não acredito nisso.

BM: O senhor tem um livro que se chama Utopia e disincanto (“Utopia e desencanto”). Por que ter focalizado o tema da utopia e do desencantamento, que parecem contraditórios?
MAGRIS: Acho que só a união da utopia e do desencanto permite uma visão justa do mundo. A utopia significa que o mundo pode ser melhorado. O desencanto é a descoberta da necessidade de corrigir. Não é algo que desencoraja, mas que ajuda a construir.

BM: É por isso que o senhor fala no livro de uma forma de esperança “irônica, melancólica e corajosa”?
MAGRIS: Sim, é como Dom Quixote e Sancho Pança. Para Sancho, os moinhos de vento não são gigantes. Aldonça não é a princesa Dulcineia, e nós precisamos da sua visão desencantada. Só que Sancho Pança segue o Quixote e, quando este deixa de ser cavaleiro andante, o “maravilhoso louco”, Sancho se pergunta: “E agora o que eu faço?”.

BM: O senhor trabalha com uma infinidade de livros e autores. Quais o senhor prefere?
MAGRIS: A Odisseia, o Antigo e o Novo Testamento, Tolstói, Dostoiévski, Kafka, Guimarães Rosa…

BM: Guimarães Rosa por quê?
MAGRIS: Grande sertão: veredas é, para mim, um livro de referência.

BM: O senhor o leu em italiano?
MAGRIS: Em italiano e em alemão. Trata-se de um livro inacreditável. Temos a sensação da unidade da vida, da amizade. E, ao mesmo tempo, deparamos com uma incrível capacidade de inventar a linguagem sem deixar de ser compreensível. Acho que Grande sertão ainda não é suficientemente conhecido. É homérico. É inacreditável. Quem me mostrou o livro foi minha esposa, Marisa. Ela escreveu Verde água, que agora está tendo grande sucesso. Nós conversávamos frequentemente sobre Grande sertão. No fim do livro, descobrimos que Diadorim é na verdade Diadorina. Trata-se da maior história de amor homossexual escrita no mundo. O amor casto do narrador por Diadorim me fez perceber que a gente não se apaixona por um sexo, e sim por uma pessoa. Me dei conta de que eu podia muito bem ser tomado por algo assim.

BM: A sua interpretação faz mais justiça ao livro do que a do escritor Dominique Fernandez, especialista do barroco brasileiro entre outros barrocos. Ele me disse numa entrevista que a sexualidade de Diadorim só se revela no final de Grande sertão: veredas porque Guimarães Rosa não aceitava a própria homossexualidade…
MAGRIS: Estranho.

BM: Para terminar, eu gostaria que o senhor me falasse do seu curso no Collège de France. O título é “A literatura europeia entre super-homem e o homem do subsolo”. Do que trata o curso?
MAGRIS: Focalizo a literatura europeia entre o super-homem e o homem do subsolo, entre 1870 e 1930. A referência a Nietzsche e a Dostoiévski é evidente. Nietzsche, aliás, dizia que o seu super-homem – que não tem nada a ver com o Superman – era idêntico ao homem do subsolo de Dostoiévski.