Cem anos para quê?

Cem anos para quê?

 

Não tenho como falar da Mãe eterna sem me referir ao que eu fiz antes. Na verdade, estive sempre às voltas com a figura da mãe. Desde O sexophuro, meu primeiro romance, cuja personagem não vê solução para si no casamento, mas lamenta a impossibilidade de ser mãe.

 

“enclausurada ela tecia o fio da lembrança, do filho que não tinha… ela descasada, no impossivel fabrico do único novo que existia, o filho sua raiz, a quem ela como a mãe se entregaria.”

 

Depois do Sexophuro, que é um texto hermético, uma prosa poética, eu escrevi O Papagaio e o Doutor. A heroína desse texto, Seriema, também está às voltas com a impossibilidade de ser mãe. Mas, desta vez, não é por não ser casada, e sim por não se reconhecer no seu sexo biológico. Seriema, a heroína, é a primogênita numa família onde o que se espera do primogênito é que ele seja homem. Trata-se de uma família oriental. Por causa desta expectativa, ela não se identifica com as mulheres da família e não tem como ser mãe.

 

“Gerar sem dar o nome. Acaso podia? eu, a primogênita? a que na tribo ocupava o lugar destinado ao sexo forte, o que nomeava? A primogenitura exigia que recusasse a vocação do meu sexo para a este escapar, não ser de todo identificada às mulheres; requeria pois que ao Ventre eu dissesse não. O lugar ou o filho, Seriema! O custo do reconhecimento dos ancestrais era a prole, abrir dela mão”.

 

Seriema supera a impossibilidade de ser mãe graças à análise, descobrindo que não precisa ser igual às outras mães, que pode ser mãe à sua maneira. O Papagaio e o Doutor mostra o quão difícil a identificação com o sexo biológico pode ser e o quão importante é o sexo imaginário. A questão de Seriema também é a dos homossexuais, dos travestis, dos transexuais… e o romance pode ser considerado um romance sobre a questão do gênero, como uma das minhas peças de teatro, também inspirada na minha análise com Lacan, Adeus Doutor.

 

Depois de ter escrito O Papagaio e o Doutor, participei ativamente da tradução do livro para o francês e, como o francês é um verdadeiro espartilho, a dificuldade era imensa, tão grande que, para pisar em terra firme, eu escrevia simultaneamente um texto novo em português, A paixão de Lia.

Trata-se de uma ficção através da qual o desejo feminino se expressa poeticamente. A história de Lia é a da sua fantasia, a da passagem de uma a outra situação em que ela, imaginando, realiza o que deseja. A cada situação corresponde um voto da personagem. O primeiro é o de encontrar um amante, o ideal. O segundo é o de encontrar num bordel os simulacros do amante ideal. O terceiro é o de ser uma cortesã e o quarto, de ser lésbica. Mas o quinto voto é o de ser mãe. Depois de ter exaltado sua relação com Lídia, Lia exalta a maternidade.

 

“Morrer tendo sido a que não pôde se perpetuar? Maria, eu vos saúdo. Ave, Conceição!

Dar à luz o pequeno outro que, sem deixar de ser ele mesmo, será eu, fará Lia, depois de morta, existir. Lídia me permite continuamente ignorar o tempo, imaginar até que sou, como as deusas, imortal, mas só o filho poderá me imortalizar. Amo Lídia mais do que a vida que tenho, porém, menos do que a imortalidade, a qual está acima da paixão. Me ouvir um dia dizer filho, escutar o outro, que jamais será estranho, ainda que não se assemelhe comigo. A voz que lhe será mais necessária não será esta que eu própria emito e de que não posso prescindir? A voz de Lia, que parecerá ter nascido para a canção de ninar.”

 

Foi só bem depois dessa viagem, em 2013, que eu escrevi Carta ao filho, um texto autobiográfico. Nele, eu me perguntava que erros eu havia cometido como mãe e como eu poderia ter evitado esses erros. Neste livro, eu rememoro a minha história com o meu filho até me dar conta de que eu nunca me reconheci em nenhum modelo de maternidade e concluir que, para ter uma conduta adequada, a mãe precisa escutar o filho. Carta ao filho me permitiu afirmar que não existe modelo de mãe e mãe modelo também não.

Seriema, personagem de O Papagaio e o Doutor, descobriu isso através da análise, e eu, através da escrita. São recursos diferentes para chegar à verdade subjetiva, que é o que de fato me interessa.

Em Carta ao filho, eu recusei a proibição secular, o tabu a que a mãe está sujeita, de não falar da sua vida sentimental com os filhos. Apostei na possibilidade dos filhos de escutar, porque acredito nela. Graças a este livro, eu entendi que o apego aos filhos é negativo, e é vital se separar. Para tanto, é necessário mudar de posição.

 

“A mãe só pode se separar e liberar o filho abrindo mão da fantasia de que ele é um bebê e aceitando que ele é um adulto. Drummond diz que, para a mãe, o filho é sempre um grão-de-bico. Porém, cabe a ela se livrar dessa fantasia. Ser mãe também é a arte de se separar na hora certa.”

 

E eu termino o livro afirmando que o momento de virar a página chegou.

 

“A fantasia de que o filho é um grão-de-bico faz sofrer, e eu agora quero a fantasia para escrever e me alegrar. Me apeguei a você excessivamente e me perdi de vista.

Quero viver agora para a atividade de que mais gosto e com os meus pares, os que privilegiam a escrita e a escuta. Não sei quanto tempo essa última vida vai durar e, por isso mesmo, preciso vivê-la intensamente.

Quero vivê-la com Oswald ao meu lado. Por não sabermos do desacordo e por ele um dia ter me dito: Mesmo numa cidade em ruínas, você e eu estaríamos bem.”

 

O amor, como o tema da maternidade, atravessou o meu trabalho literário e foi o amor da filha que me levou a escrever A mãe eterna. O texto começa com uma explicação da filha:

 

“Não tenho mais como me abrir com minha mãe, ela escuta pouco e quase não se interessa. Por causa da idade avançada, deixou de ser quem era. Para suportar a perda, escrevo a uma interlocutora imaginária, uma interlocutora tão capaz de um amor incondicional.”

 

A estrutura do romance está explicitada neste paragrafo. Uma filha que, diante da decadência da mãe, escreve para uma mãe imaginária sobre a perda que ela está sofrendo. Faz isso para suportar a perda, e ela diz “a escrita é um recurso vital quando a palavra é impossível, e, na falta do destinatário desejado, a gente inventa outro.”

Graças a este romance, consegui aceitar a passagem da condição de filha para a de mãe da mãe, uma passagem extremamente difícil. De repente, nós temos que cuidar de quem sempre cuidou de nós e fazer um luto antes mesmo de a pessoa morrer. Não há como escapar. Mas como suportar isso e de que forma agir?

Ao escrever A nãe eterna, deparei com um drama ao qual os filhos e os pais estão cada dia mais sujeitos – o da velhice extrema. Precisamente por isso, a longevidade é um dos temas do Museu do Amanhã do Rio de Janeiro. Um dos painéis diz : “Seremos ainda mais numerosos, com alguns vivendo por muito tempo. Seremos mais longevos e em muitas regiões se viverá três vezes mais do que no Império Romano. Os idosos serão tão numerosos quanto as crianças…” A longevidade, obviamente, terá consequências importantes para o planeta.

No romance, eu digo que, por causa da longevidade extrema, seria necessário inventar um outro mundo para os velhos, um mundo inofensivo e mágico. Nele, o fogo não queimaria, o gás se apaga automaticamente. Assim, o nosso velhinho não correria o risco de se queimar ou mesmo de morrer por causa de um esquecimento. Nesse mundo, bastaria ter uma ideia para ela se realizar. Se, por acaso, o querido imaginar que está indo da sala para a cozinha, o chão se desloca e o leva até a cozinha. Com o deslocamento, ele terá o sentimento de andar como sempre andou etc.

Uma das grandes questões de hoje é a longevidade. Como lidar com ela sem excluir ou maltratar o idoso? Ou seja, considerando que o idoso não é uma questão administrativa, e sim humana. A heroína de Mãe eterna procura soluções e, às vezes, ela encontra. A história do romance é simples. A mãe da narradora está quase cega e quase surda, se locomove mal e se alimenta como um passarinho. Apesar da idade, no entanto, ela se conserva esperta e só faz o que bem entende. “Passa a perna” em quem tenta domá-la com orientação sobre os médicos, os remédios, a alimentação. Ou, então, demite a cuidadora, mas, quando a filha traz outra, ela “por acaso” reencontra a anterior, que obedece sem discutir as suas vontades. Trata-se de uma velhinha muito engraçada, que faz pouco dos medos da filha.

Por exemplo, o de que ela seja sequestrada. “– Uma velha, filha. Quem vai querer me embarcar?”.

Ou, então, o medo de que a mãe beba muito. Neste caso, a mãe simplesmente diz: “– Um vinho ótimo. Quer experimentar? Você vai gostar”.

Com A mãe eterna, o leitor vai rir, mas também vai se confrontar, como eu, na vida real, com as questões mais sérias. Ao refletir sobre a condição da mãe, a filha-narradora do romance se pergunta até quando a vida deve ser prolongada e questiona a conduta do médico, que procura vencer a morte a qualquer preço. A função do médico é tratar e não prolongar a vida indefinidamente. Para a narradora, a partir do momento em que a pessoa perde a independência, se ela quiser ir embora, precisa ser ajudada. Por isso, o subtítulo do romance é morrer é um direito.

A velhice extrema pode ser tão sofrida quanto a doença terminal Se quisermos humanizar o fim, temos que respeitar o direito de morrer. De um modo geral, não temos consciência deste direito porque somos educados para aceitar o sofrimento. A narradora de Mãe eterna não aceita esta educação e é contrária à obsessão terapêutica – como, aliás, a heroína do meu romance Consolação . O tema diz respeito tanto a mim quanto a todos nós.

A filha da Mãe eterna se opõe categoricamente ao médico que, por razões narcísicas, deseja vencer a morte Quando a pessoa deseja ir, cabe ao médico suspender o tratamento e dispor dos recursos que ele tem para facilitar a morte. Ninguém deseja morrer, mas pode querer isso quando a vida se torna insuportável. Neste caso, fazer ouvidos moucos é uma forma de crueldade. Repito: por isso, o subtítulo do romance é morrer é um direito.

O problema, obviamente, é a dificuldade de se separar de uma pessoa querida…

Por isso, a filha da Mãe eterna diz: “Quando você diz que quer morrer, eu me digo que seria melhor para você não sofrer. No entanto, procuro silenciar o seu voto.” A heroína é sempre muito ambivalente, porque, na situação em que ela se encontra, não há como não ser.

Tendo se tornado a mãe da mãe, ela, num certo sentido, perdeu a mãe, ou seja, a pessoa que cuida e imaginariamente nos escuda contra a morte. A narradora do romance se refere à mãe como um passarinho que quebrou a asa.

Para este passarinho que quebrou a asa, ela precisa reorganizar o espaço físico. Mais que isso, encontrar o cuidador capaz de superar as dificuldades subjetivas com as quais ele vai se deparar. A velhinha sofre com a perda da independência e, por isso, tende a ser negativista. A tudo ela primeiro diz não. A sua conduta se torna menos irritante quando a filha entende que o não serve para afirmar a independência. O problema é que, ao afirmar a independência, ela corre o risco de fazer mal a si mesma ou corre risco de vida, saindo sozinha na rua, por exemplo.

São muitas as cenas em que a filha da Mãe eterna se desespera por não conseguir controlar a mãe. Conclui enfim que a idade deu à mãe um alvará para fazer o que bem entende e compara o velho ao poeta, que tem licença de versificação, sintaxe e ortografia. Compara ao poeta, mas estabelece uma diferença. As licenças do velho não são catalogáveis, porque ele muda o jogo continuamente. Quem se ocupa de uma pessoa idosa tem que saber disso e dançar conforme a música

Como respeitar as licenças não catalogáveis do velho, ou seja, a sua liberdade, sem deixar que ele se exponha inutilmente ao sofrimento? A dificuldade toda está nisso. Quem cuida tem que proteger. O cuidado implica uma tática e requer um aprendizado. Inútil contrariar o idoso que, além de se enfurecer, empaca. A filha da Mãe eterna tem que ser particularmente maneira e ela inclusive percebe que, para cuidar, é preciso mentir.

 

“Hoje de manhã, você me telefonou desesperada.

— Será que eu estou ficando louca? Já desapareceu um álbum. Agora, não encontro o outro, que nós olhamos juntas.

— Calma, o álbum não está perdido. Você pôs em algum lugar e não se lembra. Isso acontece comigo. Mudo uma coisa de lugar e, depois, não sei onde está.

Partilhei o seu drama inventando um outro, que não tenho, e me valendo novamente da expressão é normal.

— Não se preocupe… é normal.

Uma mentira atrás da outra, até o fim dos tempos, para minimizar seu sofrimento.

Você não está louca, está perdendo seu maior tesouro: a memória. Se desejasse abreviar sua vida, poderia contar comigo. Queira ou não, tudo o que te diz respeito me concerne.”

 

Cuidar do nosso velhinho implica uma outra relação com a verdade e com a mentira. Por isso, a filha da Mãe eterna diz para a cuidadora:

 

“– Se mamãe pedir um guarda-chuva verde e você só encontrar um azul, dá o azul e diz que é verde… Mamãe não suporta ser contrariada e ela não distingue as cores.”

 

Ou seja, legitimou a mentira para se ocupar devidamente da mãe. Devidamente significa dando ouvidos à sua velhinha, procurando descobrir continuamente a forma de agir. Isso significa que é possível aprender com o velho. Aprender sobretudo a ter paciência, a não se irritar. A narradora da Mãe eterna inclusive diz que ela tem medo de se comportar «como uma megera, em vez de ser o cordeirinho do bom pastor de que a mãe precisa”. Teme perder o controle.

Acredito que, em nenhuma outra situação, eu tenha aprendido tanto quanto nesta passagem de filha para a mãe da mãe e isso talvez sirva de consolo para os que estão numa situação análoga. Mas o meu romance não fala só do luto, ele fala continuamente do amor. Porque a filha ama a mãe, e a mãe é apaixonada pelo sentimento amoroso, que nos leva ao céu, embora também possa nos levar ao inferno.

Me debrucei sobre o tema a vida inteira e escrevi uma peça para Nathalia Timberg, Paixão, que ela encena há vinte anos. A mãe eterna fala tanto do amor quanto da morte, um tema que em geral é censurado. Por que iss ? Não é a censura que nos protege, e sim a consciência de que somos finitos e de que a vida é sempre completa, independentemente da sua duração.

 

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* Conferência proferida na Academia Paulista de Letras, em 12 de maio de 2016